Os meninos da Cáritas

Da Áustria devastada pela Segunda Guerra Mundial, foram enviadas para Portugal várias crianças, acolitadas pela Cáritas Internacional e acolhidas por famílias que os receberam como filhos. São os meninos da Cáritas, hoje com 70 anos e histórias de vida marcadas por aquela a que chamam «segunda pátria».
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Soavam as sirenes, numa cadência doentia, e o som traduzia a urgência de agarrar nos filhos e rumar aos abrigos, essas caves insalubres onde se vigiava o correr das horas com os sentidos despertos, em suspenso, até o cair das bombas dar lugar ao silêncio. Até ao regresso a uma casa que poderia já ser tão-só uma ruína. E era assim, para tantos, uma ruína. Pisar os destroços, seguir o trilho fétido, vislumbrar entre o pó a silhueta dos soldados, dos corpos que se amontoam. Tactear a cidade que cheira a morte. Essa Viena, outrora majestosa, antiga metrópole imperial, a pouco e pouco desprovida de fisionomia, numa Áustria desprovida de identidade. Engolida, em 1938, pela Alemanha do Führer, que a ela se entregou sem contestação evidente, e que se via, agora, arrastada para o abismo. Quando na Primavera de 1945 se calaram as armas e o III Reich se esfumou numa miragem, restou a mancha de destruição. E restou a fome.

«A mortalidade infantil, em Viena, no Verão de 1945, era quase quatro vezes superior à taxa de 1938. Mesmo nas ruas relativamente prósperas das cidades ocidentais as crianças passavam fome e a comida era estritamente racionada», escreveu o historiador Tony Judt no seu Pós-Guerra, História da Europa desde 1945. A escassez de alimentos atingia violentamente a Europa ferida pela guerra, onde se incluía a Áustria, que combatera ao lado da Alemanha derrotada. Um cenário que levou a Cáritas, uma organização católica internacional, a empreender uma missão que alterou o previsível futuro de milhares de crianças austríacas subalimentadas, levando-as para países com um posicionamento entendido como neutro, onde poderiam esquecer temporariamente os horrores do conflito. Portugal terá recebido, entre 1947 e 1952, mais de cinco mil crianças, acolhidas por famílias de norte a sul do país. Ficaram para a história como Cáritas Kinder (Crianças da Cáritas, em alemão).

Renate e a divisão de classes

Nasceu em Viena já a guerra tinha rebentado, em 1940. E como em tantos outros lares austríacos, o pai, o meteorologista Josef Kosmata, partiu cedo, integrado no exército alemão. Desses primeiros cinco anos de vida, Renate Plachy guarda memórias difusas que o tempo não apaga. «Tenho coisas na cabeça de que nunca me esqueço. Primeiro as sirenes, nunca me esqueço disso.» Quando as bombas destruíram o quintal e parte da casa, Renate e a mãe, Hildegard, procuraram um tecto aparentemente seguro. «Deixámos a nossa casa e fomos para o centro da cidade, ficámos numa cave, no primeiro distrito de Viena.» Em que ano, não consegue precisar. «Eu só tenho assim, como se fosse um puzzle, peças de memórias, peças dispersas. Lembro-me, por exemplo, que as pessoas contavam: "Ah, o meu irmão está no campo de concentração." Eu sentia que devia ser uma coisa horrível, não sabia o que era. Eram pessoas denunciadas, judeus. Também vi mortos perto da minha casa. Tenho cenas que nunca vou esquecer.»

Quando a guerra terminou, multiplicaram-se as denúncias, ajustaram-se contas dos dois lados da barricada. Procuraram-se aqueles que voluntária ou involuntariamente ostentaram a cruz suástica nos anos mais negros do século XX. «O meu pai teve certa simpatia pelo nazismo, porque não fazia ideia do que ia acontecer depois. Alguém o denunciou e ele ficou meses na prisão, em Viena. Mas não sei pormenores, nunca se falou nisso.» No regresso do pai a casa, faltava trabalho, como faltava tudo o resto. Ao tocar órgão na igreja, Josef foi abordado pelo padre, que lhe sugeriu que enviasse a única filha para fora do país. A mais difícil das decisões, para os milhares de pais que permitiram a partida temporária dos filhos. Tomada com a garantia de que, lá longe, lhes seria assegurada uma boa alimentação.

Em Outubro de 1948, aos 8 anos, Renate chegou a Lisboa, depois de uma longa jornada pelos trilhos ferroviários europeus. Na capital, integrou um grupo de crianças que seriam escolhidas pelos candidatos a pais adoptivos, que as acolhiam por um período, em média, de um ano. Pendurados ao pescoço, os cartões que revelavam a identidade de cada um. «Estávamos numa roda, chegaram portugueses e olhavam para as crianças. Nós não compreendíamos nada da língua, mas pelos gestos, pela mímica, senti "ah, ela gosta desta, gosta daquela, de mim não gosta ninguém porque sou muito feia". Acho que havia uma certa falta de delicadeza, sentia-me como num mercado, exposta.»

Foi levada para Estremoz, onde foi escolhida, com mais duas meninas, pelo médico Manuel da Silva Pires, que vivia em Fronteira. Renate ficou em casa do médico e de Joaquina Pires, um casal sem filhos, de idade avançada. As outras duas foram levadas para Cabeço de Vide, entregues a familiares do casal. Em casa de Manuel da Silva Pires viviam ainda uma prima e uma afilhada do médico, Zeca, que ficaria para sempre "irmã" de Renate. Pouco habituada a manifestações de afecto, Renate estranhou a recepção da mãe adoptiva. «Receberam-me bem, mas a senhora deu-me sempre beijos, ela beijava-me e molhava-me, eu não gostava disso.» A primeira palavra portuguesa que reteve? «Coitadinha».

Abre um álbum que é também um repositório de memórias. Ali estão as fotos com o traje de minhota ou o fato de anjinho, o branco a conjugar na perfeição com o louro dos cabelos e os olhos claros de menina austríaca, com que seguia, orgulhosa, nas procissões.

Renate foi notando a divisão social que atravessava o Portugal de então. «Comecei a criticar certas coisas. Por exemplo, na igreja as pessoas ricas tinham um lugar à frente, com almofadas para os joelhos, e os pobres estavam atrás. Estranhei muito isso. Grandes automóveis para os ricos e os pobres iam descalços.» Na casa que a acolheu, havia abundância: impressionaram-na «as laranjeiras e os limoeiros, que nunca tinha visto». E a imensidão do mar, que descobriu num passeio à Nazaré. «Foi para mim uma coisa tão impressionante. Ainda hoje me impressiona, o mar.» Depois de uma primeira estada de oito meses, Renate haveria de regressar duas vezes à casa dos pais adoptivos, a convite destes. Estadas curtas, a última aos 12 anos. Em Viena, prosseguiu a vida escolar e formou-se em Filologia Românica. Manuel e Joaquina faleceram na década de oitenta, mas a ligação de Renate ao país, que visita regularmente, à «irmã» Zeca e aos muitos amigos portugueses mantém-se até hoje.

Palma Caetano, o professor

Qual o número exacto de austríacos trazidos para Portugal, ninguém sabe. «Terão sido mais que cinco mil crianças, talvez até cinco mil e quinhentas. Mas um registo completo não existe», diz José Palma Caetano, professor universitário que assegurou a aprendizagem do português a muitas Cáritas Kinder, na Áustria, e que fundou a Sociedade Austro-Portuguesa.

A Cáritas Portuguesa, que na década de quarenta se designava União de Caridade Portuguesa, não tem números. Os registos que existem nunca foram estudados e não é possível aceder a eles. Maria Luísa Correia, do gabinete de comunicação, justifica: «Esse arquivo está em tratamento e recuperação há cerca de um ano.» Maria Delfina Ruivo, assessora da direcção, conta que, na época, a missão levada a cabo pela Cáritas Austríaca fez-se em coordenação com a Unidade de Caridade Portuguesa, cujo rosto visível era Fernanda Ivens Jardim, que comandou toda a operação em território nacional, com o apoio de António de Oliveira Salazar.

É o professor Palma Caetano quem tem mantido viva a memória desta história. Formado em Filologia Germânica, chegou à capital austríaca em 1962, para iniciar o leitorado de português na Universidade de Viena. Antes da sua chegada, algumas Cáritas Kinder tinham tido aulas com um professor austríaco e depois com o maestro Silva Pereira, que deixou Viena no final da década de cinquenta. «Mas o embaixador de Portugal sabia que as Cáritas Kinder existiam e pediu ao Instituto de Alta Cultura para criar um leitorado e o leitor viria encarregado de procurar reunir essa gente», conta. Tamanha empreitada coube ao professor Palma Caetano, que à chegada a Viena procurou os endereços que existiam na Cáritas e fez os contactos. «Ainda juntámos cerca de trezentos endereços. Apareceram umas vinte e tal pessoas.»

Em 1965, o mesmo grupo fundou o Clube dos Amigos de Portugal, que a partir de 1978 passou a chamar-se Sociedade Austro-Portuguesa. Entre 1965 e 2006 a presidência ficou entregue ao professor (hoje presidente honorário). O objectivo da Sociedade é claro: divulgar a cultura portuguesa na Áustria e fomentar a relação entre os dois países. E durante 45 anos os membros da Sociedade fizeram isso mesmo, com convívios, cursos de português, serões literários, conferências, excursões. Os encontros nas noites de quarta-feira não têm hoje a afluência de outrora. Grande parte da geração das Cáritas Kinder está agora nos setenta anos, algumas faleceram. A acção do professor, tradutor e poeta Palma Caetano, hoje com 79 anos, estendeu-se ainda à edição, bilingue, de dois livros. Um deles, Um Laço de Amizade entre Portugal e a Áustria, reúne 56 testemunhos de Cáritas Kinder de diferentes pontos da Áustria.

Gerlinde no País das Delícias

O rosto sereno de Gerlinde Weingärtner, a actual presidente da Sociedade Austro-Portuguesa, não deixa adivinhar as imagens de guerra que traz, desde sempre, na memória. Ao contrário de Renate, hoje é-lhe difícil expressar-se em português. É o professor Palma Caetano o intérprete neste encontro.

Gerlinde recua no tempo. Até ao dia em que a casa onde vivia em Viena com a mãe e os dois irmãos foi bombardeada. O dia em que nem o subterrâneo onde se tinham abrigado os protegeu. «Ficámos na cave, debaixo das ruínas da casa. A parte da frente da cave estava destruída, nós estávamos na parte de trás, foi a nossa sorte. Tivemos de abrir um buraco para a casa do lado para podermos sair. Foi em 1944, eu tinha 5 anos.» Nessa altura, a mãe, Adelheid Pabisch, agarrou nos filhos e levou-os para Sankt Valentin, a terra onde nascera e onde regressa para trabalhar nos campos e sustentar a prole. O pai, Adolf Pabisch, trabalhava no Tirol do Sul e depois no Tirol do Norte. No fim da guerra, foi expulso da função pública. «O meu pai não tinha trabalho, era funcionário público, foi expulso como nazi, porque todos os que eram funcionários públicos tinham de pertencer ao Partido Nacional Socialista, de Hitler.»

Um rótulo pesado e definitivo, que obrigou a mãe a deixar Sankt Valentin com os três filhos. «A guerra terminou em Maio de 1945, em Setembro tivemos de sair de Sankt Valentin porque estava sob o domínio dos russos e o meu pai estava classificado como nazi. Ele permaneceu no Tirol e só mais tarde, em 1949, é que se juntou a nós em Viena.» Com o marido longe e sem trabalho, como garantiu a mãe a sobrevivência das três crianças em Viena? «Aqui não havia carne, não havia coisa nenhuma. Ela ia para fora da cidade, comprava carne aos camponeses, o que não era permitido por causa do racionamento, e vendia aqui.» Ainda antes do regresso do pai, já Adelheid, pelas próprias mãos, tinha reconstruído o possível no apartamento destruído, de modo a que pudessem regressar a casa.

Os dois irmãos de Gerlinde ajudavam o padre na missa, e foi este que sugeriu à mãe que enviasse o filho mais novo para fora. Sozinha a garantir a subsistência dos três filhos, Adelheid vê-se obrigada a silenciar a dor de ver um filho partir. Günther partiu para Portugal em 1948, e de novo em 1949. Gerlinde partiu na Primavera de 1950, tinha 11 anos. Foi enviada para Tolosa (Portalegre) por um ano, para a casa de Brígida de Matos Rosa Biscaya, onde estava o irmão. Nos primeiros tempos, numa terra quente e árida como o Alentejo, tudo era novidade. «De tudo me admirava, para tudo olhava espantada. Para mim era impossível de conceber como é que eu podia ir a uma laranjeira e colher uma laranja.» A mãe Brígida, como ainda lhe chama, «tinha grandes propriedades agrícolas, era uma das pessoas mais ricas da região. Dirigia tudo sozinha, nunca casou, não tinha filhos».

Gerlinde começou por ter uma professora privada, até dominar o português, e foi depois para a escola. E na escola a divisão social era evidente. «Na sala eu ficava sentada ao lado da professora, porque não me devia misturar com o povo.» Também na liturgia dominical se acentuava o fosso entre pobres e ricos. «Na igreja tínhamos um banco especial à frente.»

«O que me fascinou foi que parecia viver num país das delícias. As comidas eram muito boas, tudo aquilo era tão diferente e tão bom, que se eu lá tivesse ficado não me importava absolutamente nada.» Gerlinde visita anualmente o seu «país das delícias« onde já só resta uma tia, Maria Isabel, com 92 anos. «Sempre que ouço qualquer coisa sobre Portugal sinto-me atingida, comovida, é a minha segunda pátria.»

Gerhard, uma vida ligada à cortiça

Cortiça no chão, nas paredes, nas rolhas expostas nas vitrinas, nos sobreiros despidos das fotografias. Cortiça. Korken Schiesser, assim se chama a empresa, com o verde do edifício a destacar-se numa zona industrial de Viena. E a cortiça facilmente denuncia o nome sonante da família portuguesa que acolheu Gerhard Schiesser em 1948.

O empresário nasceu em 1939, e em 1940 já o pai, Leopold Schiesser, estava destacado na Rússia, no exército de Hitler, como cozinheiro. Como em todas as histórias que aqui se cruzam, foi a mãe, Vilma, quem tomou as decisões difíceis e assegurou a sobrevivência da família. «Em 1944, eu tinha 5 anos, previa-se que Viena seria bombardeada, e a minha mãe levou-nos, as duas crianças, para uma aldeia nos arredores, a oitenta ou noventa quilómetros. Voltámos no final de 1945 para Viena, senão teríamos perdido o nosso apartamento.»

Terminada a guerra, o pai permaneceu na Rússia, agora como prisioneiro. «Esteve em Kaliningrado, um porto, os prisioneiros descarregavam os barcos. Voltou em 1948 num transporte de prisioneiros, chegou a Viena com os pés queimados pelo gelo. Mas, enfim... salvou a vida.» E como sobreviveram mãe e dois filhos durante os anos de ausência do pai? «Francamente não sei. Só me lembro que ao longo de semanas e semanas só comíamos ervilhas secas. Foi horrível, tivemos fome.»

Em 1948, após o regresso do pai, a miséria ainda assombrava o quotidiano da família. Para Leopold, era demasiado difícil recuperar o ofício de talhante num tempo em que a carne quase não existia, tal como não existiam empregos. Só em 1951 retomou a sua profissão. O contexto de pobreza força o casal a enviar temporariamente o filho mais velho para fora. «Souberam pela Cáritas que havia transportes de crianças para a Suécia, Dinamarca, Suíça, Espanha e Portugal. E por acaso saiu Portugal.»

Na parede da sala de reuniões, Gerhard tem emoldurada a cópia da carta da Cáritas, enviada aos pais, que anunciava o regresso do filho a Viena para 16 de Junho de 1949, às 6h30 da manhã. «Fiquei lá 11 meses, devo ter ido em Julho de 1948.» Primeiro, de comboio até Génova, e a partir daí no paquete Mouzinho até Lisboa, «com mais duas mil crianças». «Nunca tinha viajado num barco, foram dois dias de comboio, três dias de barco, era uma aventura.»

Quando chegou a Lisboa, na habitual distribuição territorial, seguiu com outras crianças para o Palácio Arquiepiscopal do Porto. Foi levado pelo padre Zé, juntamente com outro rapaz, Josef Seiwerth, para Santa Maria de Lamas, para casa do comendador Henrique Alves de Amorim, homem solteiro, industrial da cortiça, que vivia com duas irmãs. «Fomos muito bem recebidos, cada um tinha a sua caminha. Recebemos roupa e boa comida. Vimos pela primeira vez fruta, laranjas, bananas.» Gerhard não poderia então imaginar que quem o acolhia era o tio daquele que viria a ser um dos homens mais ricos do país, e que mudaria o rumo da sua vida.

Para um menino em terra estranha, a escola era um obstáculo difícil de ultrapassar. «Apanhei com a régua nas unhas», recorda. «Naquela altura quem não era bom, apanhava. Eu claramente era o mais fraco a ler, lembro-me que apanhei umas reguadas, o que na Áustria não havia.» Depois da primeira estada, Gerhard haveria de regressar três vezes a Portugal, por períodos curtos de alguns meses, a convite da família Amorim. Circunstância comum a quase todas as crianças que passaram por Portugal, que regressavam para visitar os pais adoptivos, a convite destes. Josef terá optado por quebrar os laços e não voltou a Santa Maria de Lamas.

Mais tarde, já na universidade em Viena, a estudar Comércio Internacional, Gerhard foi contactado por Américo Ferreira Amorim, sobrinho do homem que o acolhera, que lhe ofereceu um lugar na empresa, em Portugal. Gerhard não teve dúvidas. Mudou-se para Espinho com a mulher, em 1963, e foi aí que nasceu, no ano seguinte, o primeiro filho do casal, Henrique Günther. Em 1967 regressaram a Viena, e Gerhard fundou a primeira joint-venture austro-portuguesa. «Em Portugal havia uma ditadura, e tinha havido, pela ONU, uma resolução de boicotar Portugal economicamente.» A empresa de Gerhard passou a funcionar como placa giratória para que a cortiça da família Amorim chegasse à Europa de Leste e China. «Nós vendíamos cortiça "austríaca" para os países de Leste [ri]. Era portuguesa, e toda a gente que importava sabia que na Áustria não havia cortiça. Mas eles recebiam os produtos da Áustria e não de Portugal, e então funcionou. Nós éramos neutrais, entendíamo-nos de Moscovo até Pequim. Tivemos quase dez anos um monopólio neste sector aqui, servindo como trampolim para a Europa de Leste e para a China.»

Hoje, os negócios da Korken Schiesser, detida em dois terços pela Corticeira Amorim, estão centrados na Áustria e países vizinhos. Os clientes são essencialmente produtores de vinho, a quem fornecem rolhas «que vêm semiacabadas da Corticeira Amorim». Na fábrica de Gerhard faz-se «anualmente o tratamento, marcação e embalagem de quarenta milhões de rolhas de cortiça». A passagem por Portugal marcou a vida de Gerhard. Uma condecoração recente fez do empresário Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Comendador e industrial da cortiça. À imagem do «pai» Henrique e do «primo» Américo.

Ingrid e Maria Teresa, encontro de irmãs

Aterrou há poucas horas em Lisboa, e já Maria Teresa Barradas, a irmã adoptiva, está ao seu lado num hotel da baixa lisboeta. O reencontro cumpre-se anualmente. Também para Ingrid Jandl tudo mudou com a partida para Portugal naquele Outubro de 1948. Os anos que antecederam a viragem denunciam ainda a mágoa, que a voragem do tempo não alivia. Como a imagem daquele dia em que o abrigo foi pequeno de mais para acolher a família. «Quando se ouviam os sinos, toda a gente tinha de ir para o abrigo. E uma vez estava tudo cheio, disseram-nos "já não cabem". Fomos para casa, começaram os bombardeamentos, e de repente estava em cima da nossa mesa uma pedra grande que veio do outro lado da rua, a janela estava partida. Lembro-me de muita coisa má, mas não gosto de falar disso.» Disso, de um tempo em que a Áustria estava anexada pela Alemanha, de um tempo em que o pai, Friedrich Halas, combatia no exército alemão, em destino incerto. «Hitler entrou e nós já não éramos Áustria, durante sete anos não tínhamos nacionalidade, nem nome, nem nada.»

Em 1948, tinha a guerra terminado há três anos, ainda a fome tingia de negro o quotidiano dos austríacos. Ingrid foi integrada num transporte da Cáritas com destino a Portugal e, depois de vários dias de comboio, chegou a Lisboa, a 22 de Outubro. No dia 25, o mesmo dia em que completou 8 anos, foi levada com outras crianças para Elvas, para a igreja do colégio dos Jesuítas. «Eu estava ali sentada, já quase todos tinham sido escolhidos. E de repente vem uma mulher e pega no meu braço. Estava lá a princesa do Liechtenstein [delegada da Cáritas] e perguntou-me "quer ir com este senhor?", e eu "sim, sim". Ele foi-se embora e a criada levou-me para casa. E quando se abriu a porta ali estava a mamã, olhou para mim, abriu os braços, e isso foi a melhor coisa que podia acontecer.»

Maria Teresa da Conceição Gonçalves e Pedro Adelino Gonçalves, um casal sem filhos, proprietários agrícolas, foram os pais adoptivos de Ingrid. Maria Teresa Barradas era a sobrinha, que vivia com os pais e irmã a uma curta distância. De prima adoptiva de Ingrid rapidamente se fez «irmã», o que dura até hoje. Também Maria Teresa recorda o dia da chegada. «Ela vinha sujíssima, tantos dias de viagem. Pregaram-lhe um daqueles banhos da cabeça aos pés. Depois meteu-se na cama e dormiu dois dias. Vinha magrinha, muito magrinha. Quando chegou pesava 17 quilos.»

Para uma menina a quem em Viena faltava quase tudo, a fartura da casa que a acolheu foi uma imagem avassaladora. «O papá foi a Espanha comprar bananas para mim e trouxe um cacho enorme. Como eu não comia muito, eu não queria, porque não estava acostumada mesmo a comer, só aqui é que aprendi.» Com os pais adoptivos cumpriu a primeira peregrinação a Fátima, a 13 de Maio de 1949, ritual que repete até hoje. Mulher de fé, Ingrid guarda para si uma convicção profunda. «Eu tenho a ideia de que Nossa Senhora me levou para Portugal. Arranjou isso assim, que eu fosse para aquela casa.»

Na infância, ainda regressou duas vezes a Elvas. Para Maria Teresa ficava «o vazio» de cada vez que a «irmã» partia. «Era a minha companheira de brincadeiras.» Hoje é madrinha da filha mais nova de Ingrid, também ela Maria Teresa. Para Ingrid, só há uma forma de traduzir a experiência que viveu. «Foi como sair do frio, sair de uma cidade que não era já cidade, e entrar aqui. Como uma pessoa que vai do frio para o sol. O sol do qual nunca mais me afastei.»

Renate, Gerlinde, Gerhard e Ingrid estão entre as mais de cinco mil crianças austríacas que encontraram em Portugal paz e abundância que até então desconheciam. Os quatro protagonistas desta história, como tantas Cáritas Kinder, mantiveram no país de origem a aprendizagem da língua portuguesa e, com excepção de Gerlinde, todos se expressam num português fluente. Entre os meninos da Cáritas há ainda o exemplo de quem ficou em Portugal, como o toureiro Gustav Zenkl, já falecido, ou Ludwig Scheidl, antigo professor universitário em Coimbra. Ou de quem regressou anos depois para viver na terra da sua infância, como Fini Gradischnig, que reside em Lagoa, no Algarve. De histórias infelizes ou de casos de maus tratos entre as crianças acolhidas em Portugal não há registo. A passagem por este «país das delícias» aliviou-lhes a dor dos anos vividos num cenário de guerra. Permitiu-lhes resgatar uma infância que parecia irremediavelmente perdida.

Comunistas no porto de Leixões

A partir de Viena, Gerhard Schiesser haveria de protagonizar um episódio que desafiou as regras apertadas do Estado Novo. Num tempo em que as relações diplomáticas e comerciais com regimes comunistas não existiam, Gerhard permitiu que dois navios mercantes soviéticos entrassem no porto de Leixões para carregar cortiça. Foi no início da década de 1970. «Quando eram grandes embarques, não conduzíamos a mercadoria através da Áustria, era caro de mais. A mercadoria ia de Leixões para Tânger, e os barcos russos carregavam aí.» Mas certo dia, não houve barcos portugueses para levar a mercadoria a Tânger. «E os barcos russos estavam ali à espera, e cada dia custava uma fortuna, o homem em Moscovo começava a ficar nervoso.» Gerhard, num gesto ousado, manda um telegrama a Moscovo a assumir a responsabilidade pelos barcos e tripulação russas, garantindo-lhes que podiam avançar em segurança para o porto de Leixões. Do lado de Portugal, tinha a garantia da família Amorim de que a tripulação seria recebida sem problemas. «Tentámos acelerar, estiveram lá só dois dias e carregaram quase duas mil toneladas de cortiça. A tripulação foi muito bem acolhida pelo grupo Amorim. Era fim-de-semana, estavam milhares de pessoas no porto de Leixões para ver os comunistas.»

Lusinhos invadem a Sociedade

Gerlinde Weingärtner chegou à Sociedade Austro-Portuguesa há trinta anos, e é, desde 2009, a sua presidente. Com um objectivo claro: «Conseguir arranjar gente mais nova, que possa transmitir os nossos bens espirituais, a língua e a cultura portuguesas, e continuar a Sociedade.» E os mais jovens estão a chegar ao colectivo. Na tarde em que um forte nevão cobriu Viena, as crianças asseguram a agitação nas salas da Sociedade. São os Lusinhos, grupo que se formou nos últimos anos, e que aqui reúne às terças-feiras para a prática da língua portuguesa. Quase todos filhos de pais mistos, portugueses e austríacos, que pretendem que os filhos dominem as duas línguas, ou netos de Cáritas Kinder. Ilda Maia Fritz, há dez anos em Viena, prepara o lanche de Emília e Nuno. Deixa o apelo ao Instituto Camões, ao qual, assegura, já foi feito o pedido: «Gostaríamos de ter aqui um professor de português. Com os pequeninos ainda não faz diferença, mas para os mais crescidos, os Lusos, as crianças acima dos 7 anos que aqui se encontram às sextas-feiras.» A Sociedade tem hoje 220 membros, destes, cerca de cinquenta são Cáritas Kinder, o núcleo central e fundador de um colectivo que manteve vivo o vínculo à pátria adoptiva.

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