Os equívocos identitários
Niorka, de 12 anos, nascida em São Tomé, disse-mo assim: "Eu antes de chegar a Portugal não sabia que era preta."
Entrevistei Niorka, que tinha chegado ao país dois anos antes, na escola que frequentava em Lisboa e para uma reportagem sobre racismo publicada no DN em 2017. Não foi na primeira entrevista, para essa reportagem, que me disse esta frase, mas numa conversa posterior. Na primeira entrevista contou-me: "No outro dia, antes de ontem, estava ali em baixo e um rapaz chamou-me assim: "Olá preta". Eu não me importo que me chamem preta. Porque eu não sou preta. Eu acho que não conseguem distinguir duas cores: preto e castanho mais escuro. Eu não sou preta-preta como o carvão. Por isso eu ignoro."
Niorka nunca tinha pensado em si assim antes de lho terem chamado. Nunca tinha pensado de que cor era. Foi quando lhe chamaram preta que teve de pensar sobre isso porque ganhou uma nova identidade, essa identidade a que nos últimos tempos os ativistas e as pessoas que tentam refletir sobre este assunto - o do racismo -, denominam de racializada.
Racializada porquê? Porque é disso mesmo que se trata: de haver pessoas a quem é imposta uma identificação racial, mesmo que elas não a tenham jamais assumido ou pensado. Não é uma escolha, é uma realidade. São as pessoas que em conversas banais num país de maioria branca - e já lá iremos - são designadas pelas suas características étnico-raciais. Características que constituem, muito vulgarmente, um estigma e também um insulto.
Falar disto, trazer esta questão tão claramente existente mas durante tanto tempo recalcada ao discurso e ao debate públicos está, em Portugal como antes noutros países, a desencadear variadas reações, muitas delas derrisórias. Há quem pergunte que raio de palavra é essa, "racializado", e quem interrogue: isso significa que somos todos racializados, ou seja, definidos pela nossa cor e pertença étnica?
Fê-lo Pacheco Pereira na Sábado num pequeno texto em que diz: "Sendo também racializado caucasiano branco, nunca me passou pela cabeça tal classificação." Pacheco Pereira, como a criança Niorka antes de chegar a Portugal, nunca tinha pensado nele como "racializado"? É normal, porque na verdade nunca o foi. Nunca na rua ou na escola alguém lhe gritou "branco" como um insulto, ou o designou como tal numa conversa, para que todos soubessem de quem se trata. Nunca sentiu que o seu fenótipo o definisse porque, sendo parte da norma, é como se esse fenótipo não existisse. Esperar-se-ia que alguém com óbvia capacidade intelectual e um festejado recorde de livros na biblioteca tivesse uma análise menos pessoalizada deste tipo de questões, mas nunca é tarde para aprender.
E é preciso ter a humildade de aprender e a flexibilidade para tentar pensar o mundo fora da perspetiva solidificada em que nos estruturámos. Porque não é fácil. Trata-se, afinal, de aceitarmos isso mesmo de que fala Pacheco Pereira: uma identidade em que nunca tínhamos pensado, que nunca tínhamos sentido. Falo por mim: é-me extremamente desagradável sentir, e isso tem-me acontecido cada vez mais ultimamente, que sou percecionada e interpretada a partir da minha cor e disso que é denominado como o meu "privilégio". Mas, embora pareça por vezes, ou a maior parte das vezes, uma agressão gratuita e irracional, é um exercício útil para a empatia e para a compreensão das complexidades do fenómeno racista. A desconfiança com que o meu discurso e os meus posicionamentos são por vezes recebidos e (mal)entendidos é uma projeção, em espelho, da desconfiança e agressão que os indivíduos racializados sentiram e sentem por parte de uma maioria de que faço parte.
Essa imersão imposta num coletivo com o qual posso não sentir, pelo menos conscientemente, qualquer identificação é um auxiliar útil para compreender que essa identidade existiu sempre e sempre beneficiei dela, por mais que dela não tivesse consciência.
E esse é o principal equívoco daquilo a que se dá o nome de debate identitário: o de se falar das identidades "agressivas" das minorias como se elas não tivessem sido criadas e impostas pela agressividade identitária da maioria. Como se não fossem reificadas a cada "vai para a tua terra" (e por favor não finjam que isso não se ouve todos os dias em Portugal, a começar por esse local onde nunca devia acontecer, a escola). E como se para encararmos os problemas criados por essa imposição não tivéssemos de falar de cor, de pele, de etnia, e não tivéssemos de admitir que sempre as vimos e que elas sempre importaram. Não tivéssemos de deixar de ser tão incrivelmente hipócritas.
É um processo doloroso e é sobretudo um processo incómodo. É um processo em que vai haver exageros e extremismos, decerto. É um processo cheio de armadilhas em que pode acontecer que o ressentimento pareça triunfar e abra fossos até entre quem se julgava a lutar do mesmo lado.
Porque é normal desentendermo-nos. É normal não sabermos o que o outro sente. É normal vermos como agressividade e injustiça um discurso que nos põe em questão, e é normal que haja raiva. Acho aliás que houve e há raiva a menos. Achei sempre terrível ouvir, como ainda na citada reportagem de 2017 ouvi da boca de crianças e adolescentes negros, "que não vale a pena reagir, discutir, que nunca vai mudar." Doeu-me sempre ver nos olhos de miúdos racializados (cá está a palavra) a pergunta "o que é que esta branca sabe, por que é que quer saber o que sentimos, ela nunca vai perceber." Afligiu-me sempre que os pais aconselhem os filhos a fingir que não ouvem para "não arranjar problemas".
É preciso arranjar problemas. E é preciso enfrentá-los, falar deles, fazer com que toda a gente os veja. Vai haver gente zangada? Vai, com certeza. Vai haver ranger de dentes e vai haver definição de posições em que o racismo vai mostrar-se mais virulento porque mais exposto. É assim em todas as lutas pela igualdade: os blocos definem-se porque se enfrentam, porque se chamam ao confronto, porque o debate em si estabelece posicionamentos. Não é que se radicalizem posições: elas eram radicais à partida, só que não estavam visíveis.
É assim no feminismo, é assim na luta LGBTI, é assim na luta de classes. Enquanto os explorados e discriminados não se rebelam está tudo em paz, pois claro. Até se ouvem os passarinhos. Depois começa a gritaria.
Venha pois a gritaria. É bem-vinda. Porque significa que todos temos voz. Faz parte. O que nunca podemos permitir é que haja quem proclame que a luta pela igualdade tem proprietários que decidem quem pode participar e quem está excluído, quem pode falar e quem tem de estar calado. Ou que existem imunidades decretadas pela identidade, que esta funciona como absoluto de autoridade. Esse é o maior de todos os equívocos, o de paradoxalmente se querer, em nome da igualdade, fazer triunfar uma hierarquia, uma lógica de apartheid.