Os emigrantes e os imigrantes

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Na escola, lembro-me de aprender a diferença entre emigrante (aquele que sai do nosso país) e imigrante (aquele que vem para o nosso país). Outras línguas - e mesmo o português, no Brasil - não fazem essa distinção, usando apenas uma palavra.

Percebi, vivendo nos Estados Unidos, a diferença. Eu era, aos meus olhos, o emigrante europeu, que deixara uma redação de revista, em Portugal, para ter a experiência de viver em Nova Iorque. Os equatorianos com quem trabalhava, num restaurante, eram imigrantes ilegais (eu tinha um visto), moravam à dúzia, em quartos, conjugando os turnos de trabalho e de sono, e divertiam-se numa discoteca - Las Brisas de Acapulco, em Queens - onde pagavam um dólar para dançar com senhoras depois de longas e castigadoras jornadas na cozinha (eu servia cocktails).

José tinha atravessado a América Central e contou-me que, previamente, aprendera algumas coisas sobre esses países - a moeda, o presidente, a capital - para que, sempre que fosse apanhado e questionado, sem que pudessem saber ao certo a sua nacionalidade, o pusessem no outro lado da fronteira mais próxima, em vez de o mandarem de volta para o Equador. E contou-me também como, no meio do deserto, um dos seus companheiros de viagem partiu um pé e ficou pelo caminho. Quando lhe perguntei o que acontecera a esse homem, ele apenas encolheu os ombros.

(Anos mais tarde, a morar no Rio de Janeiro, a minha condição de emigrante europeu ficou mais vincada quando, ao mesmo tempo que uma revista portuguesa fazia, exageradamente, uma capa sobre a boa vida dos lusitanos no Brasil, os imigrantes haitianos mendigavam comida no distante e pobre estado do Acre.)

Nos Estados Unidos, dava por mim a pensar que aqueles imigrantes, com quem jantava e conversava todos os dias, tinham, de facto, uma vida melhor segundo as suas expectativas: porque mandavam dinheiro para a família - José comprara uma casa no Equador - e porque o seu sonho americano não era demovido pelo trabalho quebra-costas ou pela condição de cidadãos de segunda - José andava a tratar do green card. No entanto, eu, que não procurava a sobrevivência, que podia regressar a casa quando quisesse, que estava a viver a fantasia do proto-escritor - trabalhar num primeiro romance enquanto se vive em Nova Iorque -, dava por mim a pensar nas agruras da minha existência, julgando, por vezes, que tinha dado passos atrás: viver da mão para a boca (ainda que no orçamento coubessem drogas e álcool e brunches de domingo), lidar com o inverno de um frio desolador ou ter de servir vinho aos idiotas pomposos de Wall Street. Eu era um emigrante europeu. José era um imigrante sul-americano. Nós e eles - um problema muito comum quando olhamos para o mundo.

Sei que, mesmo que a emigração portuguesa tenha mudado em relação ao passado - há muitos licenciados, alguns arranjam bons empregos -, ainda existe trabalho pouco qualificado e algumas histórias que aludem aos tempos das bidonville de Paris. Mas, no Portugal e na Europa de hoje, mesmo para aqueles que saíram a fim de matar a fome, existe um parâmetro civilizacional estabelecido, um conjunto de exigências, aspirações e uma noção de dignidade humana a que muitos imigrantes não podem sequer almejar nos seus países de origem.

Um dos refugiados sírios, que conseguiu entrar na Hungria, disse que não queria roubar o trabalho de ninguém, mas viver na civilização, dispor de liberdade e de paz para tentar ser o que quisesse. E é desse parâmetro que falo - não a civilização da wi-fi, dos plasmas ou da Uber, mas aquela que se consagrou em 1774, garantindo que "todos os homens são iguais (...) e que têm direitos inalienáveis: à vida, à liberdade, à busca de felicidade". Uma ideia universal de civilização que foi reforçada com a Revolução Francesa, duas guerras mundiais, o 25 de Abril ou a queda do Muro de Berlim. E esses ideais não são indestrutíveis ou perpétuos. Estão em permanente ameaça. Aplicá-los implica um custo.

A questão dos refugiados não tem uma solução fácil ou simples. E provocará danos: problemas de integração, crescimento de movimentos nacionalistas, gastos públicos, risco da entrada de terroristas. Mas a vida não é perfeita, exige que dêmos algo, que não sejamos apenas recipientes acomodados daquilo que nos caiu no colo.

Acolher estes refugiados, salvar crianças de morrerem afogadas, cobrará o seu preço. Mas se outros fizeram sacrifícios bem maiores, ao longo da história, para chegarmos aqui - o que fizemos nós, afinal, nas últimas décadas, além de usar o multibanco, telemóveis e de votar? -, por que não assumir, desde já, e inapelavelmente, que não somos os únicos a ter o direito de viver numa civilização que, segundo a sua própria génese (aquela que nos permite viver como vivemos), deveria ser um direito de todos os seres humanos?

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