Os dois angolanos que conquistaram o mundo

O disco Muxima, lançado há dias, presta tributo ao Duo Ouro Negro: Raul Indipwo e Milo MacMahon que há cinquenta anos desembarcaram em Lisboa vindos de Angola – para se tornarem um fenómeno de sucesso na música popular cantada em português.
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ERAM DOIS RAPAZINHOS bem vestidos, com grande versatilidade e vontade de marcar a cena musical, que desembarcaram, no final dos anos cinquenta, em Lisboa, vindos de Luanda. Janita Salomé, uma das vozes do CD de tributo ao Duo Ouro Negro recentemente lançado [ver caixa], ainda guarda na memória a entrada dos músicos no país: «Era adolescente, ouvia muita música e lembro-me de que eles facilmente conquistaram o público português com a sua alegria e vivacidade, contrastando com o Portugal tristonho de então.»

Raul Indipwo e Milo MacMahon «trouxeram na bagagem não só o repertório africano que fascinou» mas também uma lufada de ar fresco. «Escorados nas suas tradições e cultura deram, sem dúvida, um contributo precioso para o conhecimento da música africana,  afirmando o orgulho do homem negro, nem sempre bem aceite pelo regime de então.»

As luzes da ribalta mantiveram-se acesas durante muitos anos, iluminando as centenas de actuações que os Duo Ouro Negro realizaram em Portugal e por todo o mundo. Garantem os fãs que apenas três países da América Central ficaram por visitar pelos dois angolanos, quando a morte de Milo, na Quarta-Feira de Cinzas de 1985, pôs fim à carreira do grupo e à planeada digressão à Broadway com o espectáculo Império de Iemanjá.

Começaram por se chamar Ouro Negro, por sugestão de Maria Lucília Dias, locutora do Rádio Clube do Congo Português. Ouro Negro designava localmente todo o que fosse excepcional e o projecto inicial centrava-se no folclore angolano recolhido junto de várias etnias e línguas.

Depois de várias actuações em Luanda, Raul e Milo viajaram para Lisboa por intermédio do empresário Ribeiro Braga, que tinha assistido a uma brilhante actuação dos artistas. Os dados foram lançados nos espectáculos do Cinema Roma e do Casino Estoril e a partir daí nada fez parar os dois rapazes de trajes exóticos e cores garridas. Em 1959 foram gravados os dois primeiros discos – para os quais contaram com a colaboração do brasileiro Sivuca e do seu conjunto. Muxima e Kuricutéla foram dois dos temas.

Em 1961, pouco antes de eclodir a guerra, Raul e Milo regressam a Angola. Para o grupo entra José Alves Monteiro, mais conhecido por Gin, e o duo passa, durante algum tempo, a Trio Ouro Negro. A nova formação grava cinco discos com temas de sucesso, como Garota e Mãe Preta. Regressam à formação inicial, lançam dois discos com o Conjunto Mistério, fazem versões dos Beatles (Agora Vou Ser Feliz, no original I Want to Hold Your Hand) e de Charles Aznavour (La Mamma) e começam a sua internacionalização com actuações na Suíça, França, Finlândia, Suécia, Dinamarca e Espanha.

Continuaram imparáveis pela estrada fora semeando por todo o lado novos ritmos e melodias. Exemplo do kwela, considerado o ritmo do Verão de 1965. Kwela, que em dialecto zulu quer dizer «flauta», era uma dança ritual de origem africana.

Sobre o destino do terceiro elemento muito se ouviu falar. Há quem alegue que Gin tinha sido ludibriado pelos outros dois, e outros que garantem que, devido às suas ligações com movimentos independentistas, foi «afastado» pela PIDE. O certo é que desapareceu, aparentemente sem deixar rasto.

Amigos de infância, ambos nascidos em Benguela, Milo e Raul reencontram-se no Norte de Angola. Milo tinha ido trabalhar como regente agrícola para essa região e na antiga Vila Carmona (actual Uíge) encontrou Raul Aires Peres que, como tesoureiro de uma firma sediada em Luanda, se deslocava muitas vezes a Malanje. O gosto pela música já lhes corria nas veias e foi assim que os dois amigos acabaram por pegar nos violões e tocar juntos numa festa, surpreendendo os presentes e dando o mote para uma carreira de sucesso.

Uma carreira que, anos mais tarde, até conquistou os ouvidos nipónicos, depois de uma atribulada viagem em que perderam os violões e as malas. Raul e Milo tiveram de actuar no Japão com instrumentos alugados e fatos emprestados, mas o espectáculo foi um sucesso e a música africana, tão longe de casa, marcou mais uma vez o ritmo.

Salientem-se as actuações dos Duo Ouro Negro no Olympia, em Paris, as participações em festivais RTP da Canção e a sua longa produção discográfica. Quando Milo morreu, Raul passou a actuar a solo com o nome de Raul Ouro Negro e editou o álbum Sô Santo, dedicado a Milo. Em 2000 criou a Fundação Ouro Negro, com o objectivo de incentivar a cultura e a solidariedade, com sede em Portugal e Angola. Raul morreu no dia 4 de Junho de 2006.

Orgulho africano

Foi antes da grande jornada aos Estados Unidos que nasceu a vontade de Raul e Milo criarem um projecto dedicado às raízes do homem africano. Em 1971 lançaram um dos discos mais ambiciosos de toda a carreira do Duo Ouro negro, Blackground. O álbum falava da história da escravatura, a criação de África, o nascimento de Iemanjá, a origem do som e do homem africano. Nesse mesmo ano, o Duo Ouro Negro actuou no primeiro festival de Vilar de Mouros, ao lado de Elton John, Manfred Mann e Quarteto 1111, entre outros.


A Rua d’Eliza

Inspirados na Rua Araújo da então Lourenço Marques (hoje Maputo), capital de Moçambique, Raul e Milo assinaram em 1968 uma opereta com o objectivo de chamar a atenção para a realidade africana, não muito conhecida do grande público português. A opereta foi feita num fim-de-semana nos estúdios da Tobis, em Lisboa, custou oito contos (quarenta euros) e foi um sucesso na RTP, o único canal de televisão da época. No dia seguinte à estreia, o crítico de televisão Mário Castrim escreveu: «Uma lufada de ar fresco no Lumiar [onde funcionava a RTP]. Até que enfim que ficámos três quartos de hora em frente do televisor sem nos apercebermos.»

Anos mais tarde, Raul Indipwo revelou: «Havia poucos mulatos aqui na Tuga para o elenco, daí termos ido buscar os mais morenos: os dos Sheiks (Carlos Mendes, Paulo de Carvalho, Fernando Chaby, Edmundo Silva).»


Tributo ao Duo Ouro Negro

Para assinalar as cinco décadas da chegada do Duo Ouro Negro a Portugal, foi recentemente lançado um CD, intitulado Muxima, que reúne dez canções do grupo. A ideia partiu do produtor e guitarrista Manuel d’Oliveira. «O meu pai vivenciou o repertório dos Duo Ouro Negro e como é músico costumava tocar as canções deles. Eu já tinha saudades de as ouvir e, como na Editora Farol queriam ideias novas, avancei com este projecto», contou à NS’.

Respeitando a essência do Duo Ouro Negro quanto à forma de utilização da voz, Manuel d’Oliveira pensou em quatro vozes para a interpretação dos temas. Janita Salomé, «um grande cantor, com uma carreira incontornável e contemporâneo do Duo Ouro Negro»; Yami, «músico com conhecimento muito profundo das raízes africanas mas também da música europeia»; Filipa Pais, «cantora de música tradicional com grande versatilidade»; por fim, «queria uma cantora africana que quando abrisse a boca se percebesse que vem mesmo de lá. Encontrei a Rita Lobo».

Janita Salomé, contactado há cerca de dois anos para o projecto, contou à NS’ que quando Manuel d’Oliveira lhe telefonou disse logo que sim, quase sem pensar. «Durante os ensaios sempre houve muito espaço para a criatividade. E os timbres vocais que integram o CD rimam, casam, é espantoso!» Depois, adiantou, «ganhei novos amigos». Um episódio que contribuiu para a cumplicidade que se criou no grupo ocorreu quando estiveram a gravar em Torres Vedras, num estúdio ainda em obras – exactamente no dia em que um temporal assolou a região.

«Estivemos três horas dentro do estúdio, sem rádio e sem saber o que ia acontecer, já que a única tentativa que fizemos para sair foi bastante violenta. Caiu uma telha mesmo ao nosso lado», contou o músico. Agora os cinco, juntamente com o pianista Filipe Raposo e o baterista e percussionista Joaquim Teles, preparam-se para se fazer à estrada. E, quem sabe, para viajarem até terras africanas...

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