Um Prémio Nobel da Paz sem controvérsia seria uma contradição. Há numerosas causas no planeta e este prémio tornou-se demasiado político. Em 2005, não houve excepção à regra de se conseguir agitar a boa consciência o comité norueguês do Nobel decidiu atribuir o seu prémio da paz, em partes iguais, à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) e ao respectivo director-geral, o egípcio Mohamed ElBaradei..O anúncio da escolha provocou uma pequena reacção em cadeia. O Irão sentiu a escolha como puxão de orelhas; os Estados Unidos elogiaram, mas receberam a habitual dose de crítica; os ambientalistas hesitaram entre irritação e fúria; na Coreia do Norte, não houve resposta conhecida, mas não é de excluir algum incómodo..Afinal, o Prémio Nobel da Paz deste ano vai para uma agência das Nações Unidas que regula o uso de energia atómica no mundo, mas que também tenta impedir a proliferação de armas nucleares. Estamos a falar de centrais, de produção de electricidade, mas também da estreita linha entre reactores nucleares e bombas atómicas..ElBaradei é a personagem que dá a cara, ao defender as utilizações pacíficas da tecnologia, mas também ousando no passado contrariar acusações de Washington sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque. O egípcio não hesitou em pressionar o tirano da Coreia do Norte ou o regime teocrático do Irão para que ambos desistam dos seus programas de armamento nuclear..Quando o sueco Alfred Nobel concebeu o prémio da paz que leva o seu nome, um dos critérios era premiar quem mais tivesse feito pela "abolição ou redução dos exércitos" no mundo. Segundo esta definição, 2005 será um dos anos em que o prémio chega a mãos capazes. A AIEA e ElBaradei não aboliram nem reduziram exércitos existentes, mas sem a sua existência haveria mais bombas atómicas em mãos erradas. E quantos exércitos vale uma bomba dessas?.política. A atribuição do prémio teve implicações políticas imediatas. A AIEA manteve com o Irão um braço-de-ferro em torno das ambições nucleares daquele país. Teerão sempre negou a intenção de construir bombas atómicas, alegando que essa meta seria incompatível com os preceitos da religião muçulmana, mas decidiu prosseguir unilateralmente com o programa de enriquecimento de urânio , susceptível de produzir combustível para centrais nucleares, mas também armamento..Desde o início da crise que os EUA defendiam sanções, mas os europeus insistiram em negociar um acordo com os iranianos. A agência chefiada por ElBaradei resistiu às pressões americanas de elaborar um relatório que levasse o caso ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. .Mas, ontem, um diplomata iraniano, citado pela AFP, explicava que os relatórios iniciais de ElBaradei sobre a crise iraniana eram sobretudo técnicos, tendo mudado recentemente para posições mais políticas. A acusação velada servia para insinuar que a agência não tivera um critério uniforme. Para os iranianos, a atribuição deste prémio terá dois resultados possíveis ou ElBaradei se aproxima "ainda mais" das posições americanas e europeias ou, em alternativa, a agência prosseguirá o seu "trabalho técnico" no sentido de evitar a proliferação nuclear. No fundo, estão em conflito duas concepções deste tipo de agência internacional: com poderes ou apenas com vaga influência..Embora defensores de uma AIEA subordinada aos desígnios das potências nucleares, europeus e americanos saudaram a escolha. A Comissão Europeia lembrou o papel "crucial" que Mohamed ElBaradei teve em casos como o Irão; o Parlamento Europeu destacou a "contribuição determinante" do director geral da AIEA na busca da paz. Por seu turno, a secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, felicitou os vencedores, por um prémio "merecido", lembrando que o trabalho da agência das Nações Unidas "é de importância incalculável". Não houve referência ao período em que Washington não escondia a hostilidade em relação a ElBaradei e à própria agência, por divergências em relação ao regime iraquiano de Saddam Hussein..Antes do ataque ao Iraque, a AIEA garantia que as suas inspecções não tinham encontrado indícios de relançamento do programa de armas nucleares iraquiano. Esta posição colidia com as acusações dos EUA, baseadas em informação que, segundo se sabe hoje, era considerada pelos próprios americanos como pouco fiável. O facto é que os inspectores nunca foram desmentidos e o Iraque não tinha armas de destruição maciça..ambientes. Assim, as críticas mais duras à atribuição deste Nobel da Paz vieram ontem dos ambientalistas, pouco à vontade com o facto da AIEA regular (e promover) a utilização pacífica da energia nuclear. Há hoje no mundo 442 centrais nucleares, mais 24 em construção. Uma das missões da agência é garantir a operacionalidade e segurança destas unidades..A Greenpeace, uma das maiores organizações ambientalistas, salientou de imediato este lado de doutor Jekyl e mr. Hyde. Do ponto de vista dos ambientalistas, e tal como na personagem de Stevenson, a AIEA tem dupla personalidade o lado positivo e outro negro, polícia e promotor da energia nuclear. "Controla a disseminação das armas nucleares, mas é responsável pela disseminação das tecnologias", podia ler-se num comunicado da Greenpeace. .Tal como fizeram outras organizações, a Greenpeace elogiou a atribuição do Nobel da Paz a ElBaradei, não escondendo a frustração pelo incentivo que o prémio também representa para uma indústria que os ambientalistas detestam. Alguns lembraram ainda o que classificaram de fracasso da agência na questão de Chernobyl, o maior desastre nuclear..Outra crítica chegou do Japão, único país do mundo a sofrer os horrores de explosões atómicas em áreas habitadas. Uma organização anti-nuclear japonesa foi nomeada por quatro vezes para o Prémio Nobel da Paz, mas falhou de novo..Neste dilema do copo meio cheio ou meio vazio, há quem lembre as vitórias recentes do combate contra a proliferação do armamento nuclear. A Líbia renunciou unilateralmente às suas ambições. O Irão e a Coreia do Norte continuam a desafiar a comunidade internacional, mas são homens como ElBaradei que talvez consigam abolir alguns exércitos, ao contrariarem esta teimosia.