Onheama: do verde da Amazónia para o castanho do Alentejo

Festival Terras sem Sombra trouxe ópera brasileira para o Cineteatro de Serpa. Onheama apresenta-se no sábado e no domingo
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Estas têm sido semanas complicadas para Carolina. Tem de terminar o 12.º ano, está a fazer as provas de candidatura às escolas de ensino superior onde gostaria de estudar canto e ainda tem tido os ensaios da ópera Onheama, na qual vai ser a solista mais jovem. Carolina Andrade tem 17 anos e começou por estudar piano, ainda criança, e só depois se apaixonou pelo canto. Neste momento, integra o Coro Juvenil do Instituto Gregoriano e sonha com o dia em que possa ser cantora de ópera. "É isso que quero. Vou muitas vezes à ópera ao São Carlos com o meu avô e adoro. É pena haver poucos jovens no público..."

A ópera - produção do Festival Terras sem Sombra que se estreia no próximo sábado em Serpa - tem sido especial para Carolina também por isto: "Poder trabalhar com o Coro do São Carlos e com os solistas é uma oportunidade única", diz a jovem, que faz questão de "beber" todos os conselhos e dicas que os cantores mais experientes lhe dão. Os ensaios têm acontecido no Pequeno Auditório do CCB, em Lisboa, e para o encenador Claudio Hochmann é como "montar um grande puzzle". Uns dias ensaiam os solistas, noutros os cerca de 30 miúdos do Coro Juvenil do Instituto Gregoriano, noutros os adultos do Coro do São Carlos. E ainda há os ensaios da Orquestra Sinfónica Portuguesa, com o maestro Marcelo de Jesus. "Só vamos conseguir juntá-los todos dois dias antes da estreia, mas acredito que vai correr bem. É como fazer uma refeição. Se os ingredientes são bons..."

A ópera, escrita pelo brasileiro João Guilherme Ripper e inspirada num poema de Max Carphentier ("A Infância de Um Guerreiro"), estreou- -se há dois anos em Manaus, no coração da Amazónia. Assim que a viu, José António Falcão, diretor do Terras sem Sombra, soube que queria trazê-la para o Alentejo. Depois, foi só uma questão de decidir onde e como. "Não há assim tantos sítios no Alentejo onde pudéssemos apresentar uma ópera, com orquestra, coro e tudo o mais", explica Sara Fonseca, da direção do festival, que tem acompanhado de perto toda a produção. O primeiro passo foi, por isso, encontrar o Cineteatro de Serpa e, depois, convencer os parceiros certos - o principal é a câmara, que, além de todo o apoio logístico, tem estado a fazer obras de recuperação do teatro.

Em Onheama - que significa eclipse em língua tupi -, Carolina é Iporangaba, uma jovem guerreira que em plena floresta da Amazónia vai lutar contra a malvada onça Xivi e devolver o Sol às plantas e aos animais. "No texto original era um guerreiro, mas nós quisemos que a protagonista fosse uma mulher", diz Hochmann. Durante os ensaios, o grande desafio de Carolina é conseguir cantar e ao mesmo tempo representar. Dançar, expressar emoções, correr.

Enquanto os ensaios decorrem em Lisboa, em Serpa há muito mais a fazer para receber esta ópera. Na Oficina de Costura, há molhos de ráfia espalhados pelo chão. Cortinados de contas de plástico num canto. Miniaturas de animais de brincar em cima da mesa. Não parece, mas estamos no ateliê onde estão a ser preparados os figurinos. "Isto é tudo muito diferente, para nós tem sido uma aventura", conta, divertida, a costureira Gertrudes, enquanto dá forma a uma saia tribal com fitas de ráfia.

Gertrudes Penúria, de 57 anos, trabalhou durante muito tempo no turismo mas depois de se reformar começou a investir naquilo que, até então, era apenas um hobby: a costura. Criou com um grupo de amigas a Oficina da Costura, que foi inaugurada há quatro anos num espaço cedido pela Câmara Municipal de Serpa, mesmo no centro da vila, junto à Praça da República, onde antes funcionava o turismo. "Não somos costureiras, somos artesãs", apressa-se a corrigir Fátima, uma das colegas. Na maior parte do tempo, as dez costureiras que ali costumam estar fazem bonecas de pano, talegos e outros pequenos trabalhos que vendem para as lojas da cidade. Mas também trabalhos de maior dimensão, como os fatos dos desfiles históricos. E, agora, os figurinos da ópera Onheama.

São três - Gertrudes, Fátima e Margarida - as costureiras que nas últimas duas semanas têm trabalhado intensamente para fazer os 75 fatos para todos os cantores que vão subir ao palco. "Ao princípio não estávamos muito animadas, parecia que estávamos a fazer sacos de batatas", ri-se Gertrudes. "Mas agora já estamos na parte dos pormenores e dos solistas e é mais interessante." Os fatos, de feitio muito simples, são todos feitos em pano cru, que foi depois mergulhado em café e estampado por Miguel Costa Cabral, o autor dos figurinos e dos cenários. "A ideia não é ter trajes de índios mas apenas evocar essas imagens dos índios da Amazónia", explica. Afinal, estamos no Alentejo e, por isso, em vez do verde da Amazónia vamos encontrar o castanho do barro e da cortiça das árvores.

"Não queríamos transpor a ação para o Alentejo, não fazia sentido, mas podíamos adaptar a estética dos índios para Serpa, porque não?" E já agora ter um toque de humor, de que Miguel Costa Cabral não abdica. E é assim que surgem a ráfia das saias, os colares feitos de falsas contas (que são nada mais nada menos do que reposteiros de plástico), penas tiradas de espanadores para fazer brincos e outros adornos, assim como lagartos e outros bonecos de plástico que evocam a floresta e nos lembram de que, apesar de ser uma ópera, este é também um espetáculo para o público juvenil. No cenário, o material dominante é a cortiça - com a qual se está a construir uma "floresta alentejana", e o azul do rio que será feito em tecido.

Nos estaleiros municipais, os trabalhadores já estão habituados a desafios - afinal é ali que nascem os carros alegóricos das festas de Serpa - mas nunca ninguém lhes tinha pedido para pegarem em cascas de cortiça virgem retirada dos sobreiros e construíssem 20 árvores novas, com quatro metros de altura. "Não é fácil, mas tudo se faz", comenta o carpinteiro Manuel José. Também foi ali que se pegou numa cadeira que já foi de esplanada e já alojou os juízes do campo de ténis para fazer um trono para Tuxaua. E que estão a construir um sol e uma lua, enormes, com ferro e cortiça.

"Um dos aspetos mais fascinantes desta produção tem sido o envolvimento das pessoas da terra. Toda a gente já ouviu falar da ópera, todos se oferecem para ajudar. Podemos dizer que a ópera já é um bocadinho destas pessoas de Serpa", diz, sem esconder o orgulho, Sara Fonseca. A costureira Gertrudes não vai faltar e já tem o seu lugar reservado entre as 388 cadeiras do Cineteatro: "Nunca vi uma ópera. E não deixa de ser engraçado que, depois de ter viajado tanto, a primeira vez que vá à ópera seja na minha terra."

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