Foi piloto da Força Aérea e agora escreveu este livro sobre os pioneiros da nossa aviação. Ainda se recorda da primeira vez que voou?.Sim, sim. A primeira vez que se voa é inesquecível. Foi em Moçambique. Tinha 18 anos e estava a tirar a licença de piloto no aeroclube de Lourenço Marques, hoje Maputo..Pilotou depois, já na Força Aérea, aviões a jato. Nada parecidos com os aviões dos pioneiros, pois não?.Nada, nada. Se quisermos datas fundadoras, temos em 1903 os irmãos Wright. É um voo catapultado. O avião era posto numa espécie de fisga com elástico e atirado para o ar. Depois temos em 1906 Santos Dumont em Paris, e aí é a primeira vez que um aparelho mais pesado do que o ar descola autonomamente. Com o motor. Há até hoje uma polémica entre os Estados Unidos e o Brasil sobre o que vale mais, mas os dois momentos são importantes. A partir daí a aviação começa logo a ser aperfeiçoada. E chegará a Portugal em 1909..É curioso que fale de Santos Dumont. Quando Sacadura Cabral e Gago Coutinho têm o projeto de cruzar o Atlântico Sul, querem fazê-lo em parceria porque 1922 é o centenário da independência do Brasil, mas Santos Dumont é contra. Porquê?.Santos Dumont achava que não era possível fazer o voo e por isso era uma aventura sem sentido para os brasileiros. Mas o voo era possível, como se viu, e isso deve-se à grande tenacidade de Sacadura Cabral, uma figura fantástica da história portuguesa do século XX. Mesmo tendo dificuldades em encontrar um avião, não desistiu. Ele teve de fazer uma adaptação especial na fábrica dos Fairey em Inglaterra para aquele modelo e até conheceu o engenheiro Rolls. No fundo, foi feito um avião de propósito para a viagem de 1922..[artigo:5119272].O voo Lisboa-Rio de Janeiro é feito em várias escalas, mas o trajeto entre Cabo Verde e a ilha brasileira de Fernando de Noronha é especialmente longo e arriscado?.Esse é o grande desafio da viagem. Aquele pedaço entre Cabo Verde e Fernando de Noronha é notável do ponto de vista da navegação e da coragem psicológica e física..Porque destaca mais Sacadura Cabral do que Gago Coutinho?.Sacadura Cabral é o grande entusiasta da viagem. Ele pensou muito sobre a aviação naval. Ele é que é o autor da ideia de se voar até ao Brasil. Levou Gago Coutinho mas podia ter levado outros. Até determinada altura não tinha decidido se levava um segundo piloto, porque eram muitas horas e ter alguém para dividir o esforço, ou se levava só um navegador. É uma opção que toma só depois de ter tudo em marcha..Então porque é que Gago Coutinho é tantas vezes referido como o principal? Até a nota de 20 escudos só o mostrava..Porque Sacadura Cabral morreu cedo num acidente de aviação enquanto Gago Coutinho viveu muitos anos. Morreu com 90 anos e era uma figura muito querida dos portugueses, muito prestigiada. Mas em todas as entrevistas sempre realçou o papel de Sacadura Cabral. Nunca se pôs em bicos de pés..Fala-se muito do sextante construído para a travessia por Gago Coutinho. Foi assim tão inovador?.Até foi patenteado na Alemanha! Os métodos de navegação usados foram feitos pelos dois. Tanto Gago Coutinho como Sacadura Cabral tinham muita experiência em trabalhar com o sextante. Fizeram muitos levantamentos de fronteiras em África. Viveram juntos muito tempo em acampamentos. Portanto tinham muito experiência em trigonometria com o sextante. Gago Coutinho, o que faz é, usando o sextante da marinha, colocar uma bolha de nível que permite simular o horizonte quando não há horizonte. Mas mais: faz a bolha com uma proporção que permitia que quando se espreitasse não andasse ali a mexer com grande amplitude, o que dava um foco preciso da bolha no horizonte..Há a audácia dos homens, a tecnologia do avião, mas também muita ciência nessa travessia de 1922?.Muita ciência. Esta viagem, como a de 1927 da travessia noturna do Atlântico sul, outra grande travessia, são feitas com pensamento, com ideia do que se está a fazer..Fale-me dessa travessia noturna..Em 1927, Sarmento de Beires, Jorge de Castilho e Manuel Gouveia fazem nova ligação ao Brasil. Vão via Guiné e têm um grande voo, são 17 horas, quase todas feitas de noite. De Bubaque até Fernando de Noronha..Essa escala em Fernando de Noronha na ida ao Brasil era obrigatória para os aviões da época?.Eles até pretendiam continuar, ir direto ao Brasil. Mas não deu..Muitas dessas viagens têm que ver com Portugal ter um império? Que outras vale a pena destacar?.Há a viagem a Macau em 1924. Havia esta ideia de império, sim. E é uma das grandes viagens dos anos 1920, se fizermos história comparada da aviação. E depois a viagem a Timor em 1934, que é a maior viagem desportiva desse ano, contando ida e volta. Mas aí já estamos muito no limite da era pioneira. Em 1934 há também a grande corrida à Austrália, em que um dos participantes é um avião da KLM, que pouco depois inaugura as carreiras entre a Indonésia e a Holanda. E há ainda o voo solitário à Índia do Carlos Bleck, também em 1934. Ele tinha muito esse sentido de império e até rezou numa igreja em Goa..No seu livro, destaca o papel de jornais neste período da aviação..Os jornais foram fundamentais no progresso da aviação e não só cá. Os jornais ingleses, por exemplo, davam prémios enormes aos aviadores. A primeira travessia em 1909 da França para Inglaterra por Bleriot é a resposta ao desafio de um jornal. É daí que nasce o título feito pelo Daily Mirror de que "Inglaterra já não é uma ilha". Foi meia hora de voo. Em Portugal, DN e O Século noticiavam tudo, empolgando e juntando dinheiro. Há aviões comprados com esse dinheiro. Os jornalistas envolveram-se sempre muito, sabiam que o avião era um dos grandes aspetos da modernidade. Em certa medida a viagem de 1922 acontece porque houve pressão da opinião pública ..1922, quatro anos depois do fim da guerra. Foi esta que permitiu o salto tecnológico da aviação?.Foi. De um modo geral, grande parte do progresso, muitos inventos foram criados para as necessidades da guerra e depois é que chegaram à sociedade. No caso da aviação é diferente. Nasce desportiva. São os investidores civis desportivos que fazem os aviões e depois em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, os militares vão buscar o invento. De tal maneira que alguns generais julgavam que o avião só vinha empatar e não servia para nada. Mudaram de ideia a partir do momento em que perceberam que conseguiam observar de cima as linhas inimigas e fazer missões de bombardeamento..Voltando à travessia de 1922. É comparável com o feito dos navegadores nos séculos XV e XVI?.É curioso. Todos, como contam nas suas memórias, pensaram nisso. Todos os aviadores pioneiros tinham sempre essa ideia de estar a ser outros navegantes das caravelas.