Nestas deambulações a que chamamos crónicas, que cada um preenche com o que tem para dar, é bem verdade que o "eu" joga um papel-chave: mas, como nos lembra Ferreira Fernandes no prefácio a um dos livros de que falarei adiante, "tanto melhor se (o eu) for subtil e fingir perder-se entre o que testemunha"..Uma crónica tem que ver com a visão pessoal duma consciência (de um "eu") sobre as figuras mais aparentes ou mais escondidas do seu tempo. Uma crónica faz a destilação do tempo nas palavras e constitui uma crítica pessoal a incidir sobre o mundo, no sentido em que Matthew Arnold dizia também da poesia ser "a criticism of life". Lemos as boas crónicas com um franzir de testa de atenção ou com um sorriso de cumplicidade, porque elas nos apontam um problema ou nos sinalizam um cómico impasse..O primeiro livro de que me proponho aqui falar, Zonas de Baixa Pressão, de António Guerreiro (Edições 70, 2021), é aparentemente (mas só aparentemente) o mais avesso à intromissão do "eu": a introdução de estimulantes aparelhos conceptuais de interpretação no discurso, a par de uma constante atenção crítica aos pequenos e grandes factos dos nossos dias, dão ao livro uma perspetiva entre o macro das conceptualizações e o micro dos acontecimentos, que nos evoca crónicas como as de Umberto Eco ou de Eduardo Prado Coelho, lidas nos anos perdidos da nossa juventude. Mas a posição de António Guerreiro é a de alguém que defende a vida no meio dos escombros de um colapso que está tanto por vir quanto efetivamente já aconteceu. E o aparecer do "eu" afirma-se tanto no pessoal agenciamento produtivo que faz dos conceitos, como na irrisão dos "livros de recitações", que acompanham, como bobos da corte a acompanhar os reis, a luz impiedosa da sua crítica..Talvez devamos agradecer ao esvaimento da crítica literária nas nossas gazetas a aparição destes textos de crítica cultural e social, que bem falta fazem, no meio de tanta opinião avessa a ideias e alheia à reflexão que nos submerge e abafa, como o meu amigo e companheiro de página Guilherme d'Oliveira Martins aqui assinalava. Eu, por mim, não agradeço a esse vazio crescente da crítica literária. Mas deixo posta a questão..O outro livro de que me ocupo aqui, Adeus Futuro, de Maria do Rosário Pedreira (Quetzal, 2021), situa-se num tom bem diferente. Mais próxima das crónicas brasileiras evocadas pelo seu prefaciador Ferreira Fernandes, a sua voz vem perto de nós num sussurro coloquial e arvora sempre o "eu", como evidência e como signo. Mas as suas crónicas não são menos o produto de um olhar crítico sobre os tempos e os acontecimentos. Um futuro que já não é o que era dantes....Face a um jornalismo que, na denúncia de António Guerreiro, se limita demasiadas vezes a "produzir objetos já consumidos, mostrar acontecimentos já vistos, submeter-nos a factos já interpretados", o olhar do cronista deve fazer-nos ver, além da rotina dos factos e da tagarelice do quotidiano, o que acontece e não é visto, o que aparece e não é consumido, o que nos diz algo que tem de ser interpretado. Às vezes pode ser um lampejar, uma luz entrevista, como "o infinito visto num grão de areia" por William Blake. Mas é no poder de vermos para além das frases feitas que assenta a nossa capacidade crítica..Crónica afinal é o compromisso de uma escrita particular sobre o seu tempo. E quanto mais amarrada, em incessante luta com o anjo, à contingência do seu tempo, mais duradoura e resistente será a crónica. Nestes dois livros aprendemos afinal a pensar diferente sobre um tempo que nos é comum..Diplomata e escritor