O que fica do que se perdeu

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Quando comecei a perder a fé era pouco mais velho do que as pequenas Mareen e Lilleinger cuja fé pura e sem limites, tão desprendida como a das irmãs de Lázaro de Betânia, resgata a mãe à morte em A Palavra, de Dreyer. Talvez por isso, mais do que o tio Johannes crendo-se, na sua loucura mística, a reincarnação de Cristo, a confiança das duas crianças sempre me comoveu.

Perder a fé é uma coisa assustadora, sobretudo quando, aos 12 ou 13 anos, se tem a cabeça e o coração cheios de hagiografias e de episódios como o da voz tonitruante que, na Estrada de Damasco, invectivou Saulo de Tarso e da «luz brilhante» que o cegou.

Eu temia que Deus, furioso com as minhas dúvidas, surgisse diante de mim como fantasma ou como trovão exigindo-me contas. E a parte de mim que continuava ainda, hesitantemente, a acreditar pedia-lhe que, no caso de existir, fosse, se possível, um pouco menos teatral comigo do que com Saulo e me desse só um sinal discreto de existência. Assim, antes de adormecer deixava sobre a mesa-de-cabeceira o Cavaleiro Andante com a capa virada para cima aguardando um sinal que voltasse a dar força à minha titubeante fé: aparecesse, ao acordar, a revista com a capa virada para baixo e, como sinal, isso bastar-me-ia. Tantos anos depois, ainda me lembro dessa capa: o Forte Zinderneuf da Legião Estrangeira onde Beau Geste, um dos inumeráveis heróis da minha infância, todos os sábados, que era o dia de saída da revista, enfrentava valentemente e generosamente os tuaregues e a maldade do sinistro sargento-mor Lejaune.

O Cavaleiro Andante permaneceu, porém, impassivelmente de capa para cima e a minha fé e temor a Deus (uma das questões teológicas que então infantilmente me afligiam era porque se havia de temer um Deus «que é amor») acabaram por se esvair, deixando-me talvez mais só mas, acreditava eu, mais livre.

No entanto, os seres humanos precisam aparentemente de acreditar em qualquer coisa que os proteja da insuportável consciência da irrisão da vida e lhes ofereça a ilusão de uma razão ou de um destino. No meu caso, não tardei em arranjar múltiplas divindades com que ocupar o lugar vazio de Deus: o Homem, o que quer que seja isso de «o Homem», a Razão, a Ciência, a Natureza... Frequentei indistintamente e desiludidamente - e, a maior parte das vezes, ao mesmo tempo - o marxismo (fui algo como trotsquista às segundas, quartas e sextas e algo como maoísta às terças, quintas e sábados), o budismo zen, o taoísmo, até vagamente o xintoísmo, e sei lá mais o quê.

A minha poderia ser apenas mais uma comum história pessoal do cepticismo (ou, talvez antes, da descrença) se obras como A Palavra não acordassem em pessoas mais dadas a perguntas que a respostas melancolias que questionam profundamente todas as formas, sobretudo as óbvias, de racionalidade.

A sequência final da ressurreição de Inger é das mais belas e comoventes da história do cinema e da arte em geral, só comparável à da despedida de Heitor de Andrómaca e do filho Astíanax no Canto VI da Ilíada. Ora a beleza é talvez o rosto jubiloso e convincente da verdade (não a própria verdade, mas o seu rosto).

Hoje sem fé alguma, religiosa ou ideológica, porque é que vendo filmes como A Palavra, ou lendo, por exemplo, textos como o Livro de Job, experimento sempre uma confusa sensação de perda, como aqueles amputados que continuam a sentir a perna ou o braço que já não têm? Talvez não seja bem melancolia mas, antes, a longínqua persistência de algo, uma, que sei eu?, espécie de resíduo ou de subproduto, em qualquer sítio onde nem a razão nem a vontade (e muito menos o dúbio bisturi de Condillac) podem alcançar.

NOTA: Manuel António Pina escreve segundo a antiga ortografia.

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