O que é feito do clamor cavaquista?

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Ao ler os comentários já feitos ao livro de memórias do anterior presidente da República, o homem que se deixa anunciar com três nomes precedidos de um título, professor Aníbal Cavaco Silva, constato denúncias de falhas de carácter, identifico superiores lições de moral, contabilizo indignações. Dos defensores, em muito menor número, relevo o elogio às atitudes de respeito institucional e à opção pelo exercício de uma magistratura de influência com que ele tentou gerir as agruras de dois mandatos em Belém. Portanto: de um lado, a atacá-lo, há textos esfuziantes e eloquentes; do outro lado, a defendê-lo, encontro linhas respeitosas mas corriqueiras.

Tirando o académico que apresentou o livro na quinta-feira passada, Manuel Braga da Cruz, não encontrei durante os quatro dias seguintes, por entre o vasto cardápio residente de opinadores do regime, uma alminha capaz de fazer um franco, desassombrado e entusiasmado elogio à obra do político reservado e circunspecto que precisou de quase 600 páginas para descrever as reuniões com o então primeiro-ministro José Sócrates.

Mesmo o apreço que referi anteriormente, lido em Rui Ramos no site Observador, resume-se crismado com um melancólico "sem Cavaco Silva teria sido pior"... Que falta de entusiasmo, caramba!

Abundam abordagens salomónicas e condescendentes em que, por um lado, se elogia a intenção do anterior presidente em prestar contas e registar para a posteridade um conjunto de factos históricos mas, por outro lado, se critica a acrimónia e falta de objetividade de boa parte dos seus relatos.

Até entre as viúvas da resistência a José Sócrates leio críticas à alegada manipulação dos factos feita por Cavaco Silva no relato do caso das "escutas a Belém", dando razão, neste ponto, ao incriminado ex-primeiro-ministro... Que espanto!

Como é que o lançamento de Quinta-Feira e Outros Dias atrai personalidades relevantíssimas do país, numa pouco disfarçada e concorrida romaria de homenagem, mas agora essas mesmas pessoas tolhem-se na defesa do autor às críticas subsequentes? Onde estão os últimos cavaquistas empedernidos que durante 35 anos defenderam, crónica e estrepitosamente, o seu amado líder?

Que Cavaco, afinal, ficará para a história? No PSD, apesar de ter sido o seu líder com mais êxito político, nunca conseguiu ocupar o lugar dado pelo carisma de Francisco Sá Carneiro. Como primeiro-ministro, muitas das opções tomadas em época de expansão económica paga pelos dinheiros da CEE e com a entrada no euro estão hoje postas em causa, a começar pelo próprio Cavaco Silva quando passou como presidente da República a criticar a aposta no betão, o excesso de autoestradas, as políticas que levaram à desertificação do interior ou estoiraram com a agricultura e as pescas, como se não tivesse sido ele próprio a defini-las, na sua essência, há 30 anos. Como presidente da República fica associado à defesa das políticas de austeridade da troika que deprimiram e revoltaram o país, às conspirações palacianas, ridículas, contra Sócrates e à ironia de terminar a carreira a dar, depois de anos de luta sectária contra a esquerda, posse a um governo apoiado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda.

É esta visão do lugar na história ocupado por Cavaco Silva que o próprio tenta com as suas memórias, desesperadamente, evitar, desmontar ou justificar. É o clamor de um derrotado, um surpreendido e incrédulo derrotado.

E é por isso, como infelizmente é costumeira tradição portuguesa, que muitos dos que ontem lambuzavam a mão do poderoso Cavaco Silva evitam agora, discretamente, sujarem as mãos em defesa do derrotado Cavaco Silva.

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