O Prémio Nobel da Literatura

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O escritor tanzaniano de origem iemenita, nascido na ilha de Zanzibar e que desde 1960 mora em Londres, onde chegou como refugiado, Abdulrazak Gurnah, acaba de receber o Prémio Nobel da Literatura 2021. A Academia Sueca de Ciências justificou a sua decisão - que surpreendeu meio mundo e o outro - "pela sua abordagem intransigente e cheia de compaixão dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes".

A surpresa da atribuição do mais importante e valioso prémio literário do mundo a um autor que não fazia parte dos nomes cotados em todas as apostas para o receber - o escritor angolano José Eduardo Agualusa chamou-lhe "zebra", recuperando a curiosa expressão popular brasileira precisamente para a palavra "surpresa" - foi acompanhada, pelo menos inicialmente, por expressões de satisfação, em África e outras partes do mundo, pelo facto de a Academia Sueca ter decidido premiar um autor africano. O queniano Ngugi wa Thiongo, há anos um dos mais fortes candidatos ao prémio, exultou: "O Nobel regressou à África!", disse.

De facto, todo o mundo tem destacado o facto de Gurnah ter sido o sexto (ou sétimo, se acrescentarmos à lista o franco-mauriciano Jean-Marie Le Clézio) escritor africano (o segundo negro do continente) a levar o Prémio Nobel da Literatura. A revista digital Brittle Paper publicou um dossiê com as reações de mais de cem autores africanos sobre o assunto, a esmagadora maioria dos quais expressou a sua satisfação pelo acontecimento.

Compreensivelmente, tem havido exceções. Não me refiro às reações que vou considerar como meras manifestações de uma espécie de "síndrome de Harold Bloom", o autor do abusivo cânone literário do Ocidente, tais como a frieza com que a decisão da Academia Sueca de Ciências foi acolhida em Itália ou a dor de cotovelo do escritor brasileiro, autor de dois livros, que leu um dos dez romances do novo Nobel, não gostou e disse categoricamente que ele não merece o prémio. Refiro-me, em particular, a certas manifestações africanas.

Recorro, para isso, a Agualusa, que conta, na sua habitual coluna do jornal brasileiro O Globo no último sábado, 16, que muitos africanos não consideram (ou pelo menos não consideravam) Abdulrazak Gurnah nem africano nem negro, por causa da sua história pessoal. Com efeito, o escritor, nascido numa família com raízes no Iémen, foi obrigado a abandonar a Tanzânia logo após a independência, na sequência de vários ataques à minoria árabe pela maioria negra.

O festejado escritor angolano cita o moçambicano Nelson Saúte, que não hesitou em escrever há dias que Gurnah é tão "africano" como o célebre cantor Freddy Mercury, da banda The Queen, também nascido no Zanzibar, mas considerado por todos um músico britânico. Agualusa - com precisão - identifica a falha de Saúte: enquanto a música de Mercury é assumidamente britânica e internacional, a obra de Gurnah é africana, sendo focada, em especial, na problemática dos refugiados.

Diga-se: o facto de, há um pouco mais de seis décadas, o novo Nobel de Literatura ter sido obrigado, com a família, a deixar a Tanzânia, por não ser "suficientemente" africano ou negro, e mesmo assim ter produzido uma obra literária assumidamente africana abona a favor dele e apenas desqualifica os essencialistas identitários. Sobre isso, estamos entendidos.

Acrescento que a minha posição em relação ao Prémio Nobel da Literatura é tranquila. Em primeiro lugar, há sempre vários "nobelizáveis", mas apenas um autor pode levar o prémio, nem sempre por razões exclusivamente literárias. Em segundo lugar, como ignorar, realisticamente, a "geopolítica" do Nobel? Autores ocidentais e que escrevam em inglês estarão sempre na frente da lista.

Por isso, o meu eterno candidato "íntimo" - Luandino Vieira - dificilmente o há de ganhar um dia. Mas, como sabem os leitores, estará sempre em boa companhia.

Escritor e jornalista angolano, publicado em Portugal pela Caminho

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