No passado dia 4 de abril, ao chegar a casa depois de um dia de trabalho, Nelson Ribeiro tinha uma encomenda à espera. Abriu o embrulho e lá estava ele, vermelho e azul, a teia no centro do peito, escamas dos pés à cabeça - o fato do Homem-Aranha. Nelson tem 37 anos, mas naquele momento até podia ter 7. «Estava sempre a pedir o fato emprestado à Marvel», explica. «Agora tenho o meu, que posso usar quando quiser!».Nelson é, há quatro anos, editor na maior empresa de banda desenhada do mundo, onde são criadas as aventuras do Homem-Aranha, do Homem de Ferro, do Wolverine, do Capitão América ou dos X-Men. É ele quem desenha capas e recupera imagens antigas para novas aventuras em formato digital. Hoje a empresa não está a criar novos super-heróis, apenas recupera personagens do seu arquivo de quase dez mil. Um dos projetos mais ambiciosos em que Nelson esteve envolvido recentemente foi a coleção de 15 livros Marvel Universe from A to Z. Atualmente, o ilustrador está a editar dez aventuras do Homem-Aranha que serão publicadas num volume único. .Nelson também tem um blogue no site da Marvel (fans.marvel.com/trades_department) e, como é o único dos duzentos funcionários da empresa em Nova Iorque que fala português, ainda faz a ligação com Portugal e Brasil. E isto é tudo o que ele sempre quis ser... O único sonho que teve desde o dia em que o primo José interrompeu os desenhos animados que ele estava a ver e lhe perguntou: «Sabes que também fazem livros com estas histórias?» Nelson não sabia. Mas desde que o primo lhe ofereceu o número 256 do Incrível Homem-Aranha, desde que viu o seu herói em queda livre enquanto lutava com o inimigo Puma, desde que se perguntou «como é que ele vai salvar-se?», que nunca mais parou de os ler. Hoje, a coleção de 15 mil livros desencadeada por esse volume inicial enche todos os cantos da casa que divide com a mulher, Jessica, em Nova Iorque..Nelson é filho de Rosa e Diamantino Ribeiro, dois emigrantes de uma aldeia do concelho Gouveia que chegaram aos EUA na década de 1960, e nasceu em Sleepy Hollow, no estado de Nova Iorque. Foi no clube português desta cidade que jogou matraquilhos, comeu bifanas e bebeu Sumol. Foi integrado no rancho folclórico local quem e desfilou e atuou vestido de pescador, para espanto dos amigos americanos. .Foi também em Sleepy Hollow que começou a coleção de BD, com os quatro dólares que o pai lhe dava todas as semanas. O valor era suficiente para quatro livros, mas o rapaz desenvolveu estratégias para esticar o orçamento. «Quando íamos ao clube português, pedia ao meu pai dinheiro para comprar um Sumol. Depois ia ao bar e só bebia um copo de água.» Os pais sempre apoiaram o passatempo. «Só falava português em casa, por isso eles gostavam que lesse em inglês.» Nessa altura, a loja de BD mais próxima ficava a quase trinta quilómetros. «Para quem se deslocava de bicicleta era uma distância impossível.» Felizmente, o primo José levava-o..Foi nessa loja que apanhou o seu primeiro desgosto. Quando pegou pela primeira vez na novela gráfica Wolverine & Nick Fury: Scorpio, a tentação de conhecer a aventura foi incontrolável. Nem o preço - «16,95 dólares [menos de 15 euros], mais de um mês de mesada» - o impediu. E decidiu avançar. Mas o funcionário respondeu-lhe que «novelas gráficas só para maiores de 16 anos» e Nelson voltou para casa, «a olhar pela janela do carro, sonhando com a aventura que deixara para trás». Nunca imaginou que, quase três décadas depois, em Março de 2012, seria o editor de uma reedição desse mesmo volume. «Só que agora é o meu trabalho. Pagam-me para ler a história que antes nem pude comprar.».Nelson formou-se em design gráfico na Joe Kubert School of Cartoon and Graphic Art e trabalhou 12 anos na Archie Comics, mas o objetivo foi sempre a empresa comprada pela Walt Disney em 2009 por 2,8 mil milhões de euros, mais do que os chineses da Three Gorges deram pela participação do Estado na EDP. Os super-heróis da Marvel são um negócio tão valioso que a companhia impede fotografias nos seus escritórios ou a entrada de qualquer pessoa (mesmo funcionários) sem um aviso de 24 horas de antecedência. Por isso não foi possível fotografar Nelson no interior das instalações..Ainda assim, o luso-americano teve a primeira oportunidade de visitar a empresa quando estava na faculdade. Na altura, foi à casa de banho e colocou quarenta cartões profissionais entre cada folha de papel. «Sempre que alguém enxugava as mãos, caia um cartão meu.» Ninguém lhe ligou, mas ele continuou a insistir. Enviou dezenas de currículos, uns em papel verde fluorescente, outros em folhas cor-de-rosa, uns com letras minúsculas, outros numa fonte gigante. Em 2008, foi finalmente chamado para uma entrevista. O seu currículo era uma banda desenhada em que ele era o herói. Levou também os volumes de BD em português, «para provar que era um fã em duas línguas». Conseguiu o trabalho. «Foi como ganhar a lotaria.».A paixão pelos comics manteve-se sempre ao longo da infância e adolescência. Passava todos os verões da infância e adolescência em Portugal e na aldeia dos avós, na serra da Estrela, abria as revistas traduzidas, saía da casa de xisto, rodeada de ovelhas e montanhas, e entrava num mundo fantástico onde heróis combatiam vilões, evitavam o fim do mundo e no final beijavam a dama em apuros..Às vezes era impossível sacudir a fantasia na última página. E Nelson fez as habituais - e perigosas - tropelias das crianças encantadas com os heróis. Quando tinha 7 anos, ficou em casa para curar uma gripe. Assim que a mãe saiu para o trabalho, soube que tinha de ser rápido - em menos de duas horas, o pai chegava. O plano era abanar o casaco dos pijamas muito rapidamente, correr até ao fundo da cama, saltar e voar. «Se os meus heróis conseguiam...» Até abriu a porta do quarto para a cozinha. Já conseguia ver-se, suspenso, a dar uma volta na cozinha e a aterrar na cama (era um voo experimental, nos próximos dias a viagem seria mais longa). Concentrou-se. Abanou o casaco freneticamente, correu até à berma da cama e enviou-se. Ficou suspenso por uns instantes. Até aterrar contra o armário, deslocar o ombro e gemer no chão até o pai chegar a casa..Da primeira vez que leu uma história do Quarteto Fantástico, foi o Homem Tocha que lhe ficou na memória. «Já tinha aprendido na escola que o ar quente sobe mais do que o frio e isso deu-me uma ideia.» Embrulhou-se muito bem num cobertor, pegou num isqueiro e queimou uma ponta junto aos pés. As chamas envolveram-no em segundos. «O cobertor era de nylon, ardeu logo.» O pai entrou no quarto, atirou-o ao chão e fê-lo rolar sobre si para apagar o fogo. .Diamantino morreu quando o filho começava a ter sucesso. A mãe diz às amigas que o filho «trabalha na empresa que faz o Homem-Aranha, o Super-Homem e o Batman», mas ele corrige de imediato: «Mãe, dois terços dessa frase estão errados! É só o Homem-Aranha.» Ele acha que a mãe só percebeu a importância do seu trabalho quando o jornal da comunidade, o Luso-Americano, publicou o seu perfil. Nelson enviou-lhe cinco dos 15 exemplares que comprou com os olhos colados no balcão, para que a funcionária não percebesse que a sua cara era a mesma que estava impressa na primeira página..Para Nelson, a BD é mesmo a única forma de se transportar para outros mundos. O poder que mais gostava de ter é o voo, mas também sonha andar à velocidade do pensamento. «Podia pensar que estava na Florida, onde mora a minha mãe, e pronto, estava lá.».«O que me fascina nos super-heróis é que têm um problema que parece impossível, mas arranjam sempre forma de o resolver.» Quando Nelson tem uma dúvida, pergunta-se: «O que faria o Homem-Aranha?» Por vezes, ao conduzir, imagina que «se tivesse o poder do vento, mudava este carro para a outra faixa» ou «se tivesse o poder da força, enviava-o para o rio». Quando chega a casa, vê as notícias e pensa: «Podia resolver isto tudo num dia.».No entanto, não precisou de superpoderes para mudar a vida de Anthony Smith. O pequeno de 4 anos nasceu sem audição de um ouvido e praticamente nenhuma do outro, o que obriga ao uso de um aparelho a que chama blue ear. No início do ano, a mãe de Anthony escreveu para a Marvel relatando que o filho se tinha recusado a usar o aparelho porque «os super-heróis não usam». Queria saber se existia alguma personagem que não ouvisse. «O mais provável é ficar presa no vosso spam. Mas nunca se sabe. Tenham um bom dia.».Na volta do correio, chegou uma imagem dos The Avengers (Os Vingadores), de 1984, com Hawkeye na capa, o herói que ficou surdo depois de levar com uma seta no ouvido enquanto salvava alguém. E logo depois chegou um e-mail de Nelson com uma iamgem..«Assim que ouvi a história e descobri que chamavam blue ear ao aparelho pareceu-me nome de super-herói. Por isso quis criar um herói que precisasse de um aparelho de audição e, assim que o colocasse, ouvisse tudo o que os outros heróis não ouviam.» O resultado mostra Blue Ear no topo de um arranha-céus. Na rua, alguém pede ajuda e o herói comenta: «Graças ao meu aparelho de audição, consigo ouvir que alguém está com problemas.».Desde que recebeu a imagem do Blue Ear, Anthony usa sempre o aparelho. Quando mostrou o seu herói na escola, os colegas exigiram que fosse criado o Dia dos Super-Herois. Neste momento, aguarda o fato de Blue Ear que a Marvel mandou fazer para ele. «Não acho que tenha tido tanto impacte na vida de Anthony como o que ele teve na minha», diz Nelson. .Nelson ainda imita os seus heróis, mas desistiu de tentar voar. No último campeonato de softball, que a Marvel joga todos os anos com a rival DC Comics (essa sim, a casa do Super-Homem e do Batman), a sua missão foi pendurar-se na rede vestido como o seu herói preferido. «Fiquei a dizer piadas como "o Homem-Aranha. É isso que gosto nele: usa o cérebro". Quando está a lutar, lembra-se sempre de dizer alguma coisa que distrai o adversário e acaba por vencer.» Nesse dia, em março do ano passado, no campo do Central Park, a estratégia resultou. A Marvel venceu por 19-4.