O reaparecimento nas salas de cinema de O Mensageiro, de Joseph Losey, em cópia restaurada, relança o nosso olhar num tempo em que o cinema vivia irredutíveis convulsões. O filme venceu o Festival de Cannes de 1971 e bastará lembrar alguns títulos da respetiva secção competitiva para reconhecermos a riqueza do momento: Morte em Veneza (adaptação de Thomas Mann por Luchino Visconti), Taking Off/Os Amores de Uma Adolescente (estreia de Milos Forman na produção americana), Pânico em Needle Park (com Al Pacino, sob a direção de Jerry Schatzberg, retratando cenários da toxicodependência), etc..A direção fotográfica de Gerry Fisher em O Mensageiro contém singularidades cujo fascínio o tempo reforçou. Faltavam décadas para a generalização do digital: a utilização da película de 35 mm envolvia desafios, desde logo nos espaços interiores, que implicavam a utilização de variadas fontes artificiais de iluminação. Esse controlado artifício é tanto mais sugestivo quanto o filme integra um importante contraponto visual: uma parte significativa da ação decorre em exteriores (Norfolk, Leste de Inglaterra), valorizando os elementos paisagísticos através de um tratamento de luz e cor que nos remete para a herança de pintores ingleses do século XIX, como John Constable ou Peter De Wint..A história do jovem Leo (Dominic Guard), adaptada do romance homónimo de L. P. Hartley, começa mesmo num momento simbólico de viragem, 1900, ano do seu 13.º aniversário. Dir-se-ia que as suas memórias implicam uma despedida dos valores de uma época que a passagem do tempo reconfigurou em nostalgia, silêncio e amargura. Convidado de um colega de escola, Leo vai descobrir o esplendor da mansão da família Maudsley, deparando-se com um mundo cuja riqueza desconhecia, organizado num sistema em que os rituais do luxo são tão importantes quanto as aparências de harmonia e felicidade..A sua condição de "mensageiro", entregando as cartas de amor trocadas por Marian (Julie Christie) e Ted (Alan Bates), vai trazer-lhe uma dupla lição. Lição social: as diferenças de classe dos amantes definem o ABC de um escândalo. E inesperada lição existencial: que acontece, afinal, entre Marian e Ted, a ponto de os tornar não apenas moralmente escandalosos, mas também romanticamente sedutores? Leo descobre, assim, que o conhecimento da sexualidade, ainda que pressentida num labirinto de olhares, insinuações e subentendidos, esbarra na própria dificuldade de transformar o seu pressentimento em palavras precisas. A certa altura, tenta mesmo que Ted o esclareça, recebendo apenas como resposta uma palavra possível para os enigmas do que acontece entre os amantes: spooning (nas legendas portuguesas: "marmelada"). Ted, aliás, reconhece que a palavra é "estúpida", mas devolve o enigma ao próprio Leo, dramatizando o seu saber feito de coisas por dizer: "Parece que sabes alguma coisa sobre o assunto.".Na verdade, sabe e não sabe, já que o papel que acaba por desempenhar na relação de Marian e Ted não é alheio ao seu fascínio por Marian. Aí, as palavras não lhe faltam: "Acho que ela é estupenda", diz ele a Trimingham (Edward Fox), personagem "errada" na teia de equívocos em que se move, já que Trimingham é o noivo oficial de Marian... com quem ela não se quer casar. E acrescenta: "Faria tudo por ela.".Tudo isto é trabalhado não exatamente através do cliché da descoberta "juvenil" da sexualidade, mas sim como algo que persiste através de desejos e emoções que se aquietaram num magma metodicamente solidificado por sucessivas camadas do tempo. A adaptação do romance de Hartley foi feita por Harold Pinter e, para lá dos méritos da realização de Losey, não será abusivo reconhecer que a vibração das palavras ditas em O Mensageiro não é estranha à sua filosofia das imagens: "Quando olhamos um espelho, pensamos que a imagem que nos confronta é exata. Mas basta movermo-nos um milímetro e a imagem muda. De facto, estamos a ver uma interminável variedade de reflexos. Mas por vezes o escritor tem que quebrar o espelho - porque é do outro lado desse espelho que a verdade nos contempla." São palavras ditas por Pinter, várias décadas mais tarde, a 7 de dezembro de 2005, ao receber o Prémio Nobel da Literatura.