O ouro e a prata nossos nos marcai cada dia

Nem tudo o que luz é ouro, diz o ditado. Para que possa distinguir o verdadeiro do falso, 84 pessoas trabalham na análise e marcação das peças. Crónica  de uma actividade quase secreta
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Cabeças de veado, andorinhas, águias, papagaios, pelicanos, pombas. O mais certo é nunca ter dado conta destas minúsculas marcas que, desejavelmente, adornam as suas jóias, sejam elas a aliança de casamento, as pulseiras ou argolas de prata ou o fio que a madrinha lhe ofereceu pelo baptizado. E ainda mais provável que, caso tenha dado pelos contrastes (é esse o nome correcto), nunca se tenha interrogado sobre a sua proveniência - quem as faz, como e porquê - e efectivo significado.

"Acho que isto, à maior parte das pessoas, lhes passa completamente ao lado. Eu própria nunca pensava no que seriam aquelas marquinhas, antes de trabalhar aqui. Quando digo que trabalho numa contrastaria, as pessoas dizem: o quê?" Carla Caldeira, 32 anos, licenciada em química tecnológica, é há oito anos uma das técnicas do laboratório que testa as peças para lhes avaliar a percentagem de metal precioso. Uma tarefa que envolve pedaços de bauxite, um padrão, ácido, computadores, fornos, e muitas coisas mais. "Há vários tipos de ensaios. O mais complicado e moroso, e que tem o problema de destruir as peças, é o químico", explica Carla, que a meio da descrição do processo para o ouro já deixou a assistência perdida: é uma coisa que passa por colocar a amostra dentro de folha de chumbo, levá-la ao forno a 1000 graus - o que evapora o chumbo -, e mergulhar o resultado num ácido que retira a prata e deixa apenas o elemento áureo, cujo peso é depois confrontado com o da peça em causa, permitindo perceber a percentagem usada na liga. Este método só é utilizado em última instância, se as peças vêm referenciadas com uma percentagem determinada de ouro que não corresponde à avaliação da Casa da Moeda e o cliente quer um "tira-teimas".

Com formação específica efectuada na Contrastaria para os processos de análise dos metais preciosos, Carla, que tinha sonhado ser veterinária ("A média não chegou, assim arranjei dois gatos e um cão") passou pela EPAL e pela investigação no Instituto Superior Técnico antes de vir para a Casa da Moeda, onde um dia, acabada de se tornar proprietária de um apartamento no Barreiro, pegou num relógio de pulso que estava marcado ao mesmo preço, oitenta mil euros. "Pensei: 'Tenho aqui a minha casa na mão'". Ri. "Passam coisas caríssimas aqui, naturalmente. E lindas. Lembro-me por exemplo de uma tiara, que acho que era para a filha do Champalimaud... Acho que o nosso trabalho deveria ser mais promovido, porque estamos basicamente a defender o consumidor, a fazer controlo de qualidade. Repare, um dia peguei numa caixa de cruzes de ouro branco para analisar e havia lá no meio, à mistura, cruzes de aço. Notei pela cor. Mas há coisas dessas que podem passar despercebidas, porque não podemos analisar cada peça, fazemos uma amostragem, por exemplo numa caixa de 200 anéis analisamos 30. Temos de estar atentos, porque o nosso trabalho é sempre na perspectiva da honestidade para com o consumidor."

E a honestidade com o consumidor, num negócio no qual uma pequena diferença na composição do metal corresponde a uma fortuna, é uma matéria a merecer toda a atenção, tanto mais simbólica quanto está em causa aquele que desde há muito é o padrão do valor: o ouro. Para o vender, como à prata e à platina, os ourives são obrigados a marcar as peças na contrastaria oficial e para tal acreditarem-se junto da mesma, entregando os artefactos por marcar na respectiva recepção, onde encontram por exemplo Pedro Joaquim, 29 anos. Na Casa da Moeda há cerca de sete anos, começou o Diário da República electrónico (tem o 12º ano do o curso tecnológico de informática), passou para a secção de logística e está agora a recepcionar, pesar e documentar jóias, canetas, relógios. "Os comerciantes têm de ter um cartão para vir aqui. Os particulares também podem pedir um exame, mas não entram pela nossa recepção, têm um guiché próprio - e basicamente recebemos as coisas e tomamos nota do peso e da identificação de cada lote." Em caixas de plástico cinza numeradas, as peças circulam depois entre o laboratório e a sala de marcação, para voltar a sair pelo mesmo sítio. "Acho este trabalho enriquecedor", comenta Pedro, alheio à dupla leitura da frase. "Antes de vir para aqui não sabia de nada disto. Sabia que havia contraste e achava que haveria algum controlo, mas não fazia ideia de qual, por quem... Agora se for comprar alguma coisa já saberei como certificar-me de que presta."

Prestar ou não: do folclore da contrastaria faz já parte uma história recente, de uma senhora que comprou por 1800 euros um colar como sendo de ouro e pedras preciosas e, num aperto, o quis empenhar para descobrir que não lhe davam por ele mais de 50 euros. Foi para tribunal e daí solicitaram a avaliação da Casa da Moeda. Confirmou-se: a peça era falsa, prata dourada por ouro. E a compradora, literalmente assaltada num balcão de ourivesaria, só deu pelo roubo por acaso. Quantas destas falcatruas não ocorrerão?

Para além da informação aos consumidores, que tem nesta área primado pela invisibilidade - de que o desconhecimento sobre o próprio serviço da contrastaria é caricatura - a fiscalização é essencial para lutar contra a burla. Até 1999, as acções de inspecção específica eram conduzidas pela própria Contrastaria, enviando equipas para todo o país. António Delgado, que aos 49 anos vai fazer 25 "de casa", andou pelas ourivesarias a analisar peças e a fazer apreensões. Na primeira saída, "há uns 20 anos", foi para o Alentejo. "Fizemos uma apreensão ali para a Vidigueira e viemos descansadinhos para o hotel. Mas vimos que era cedo e resolvemos ir ainda a outra loja. À saída, junto ao carro, demos de caras com quatro GNR de metralhadora. Perguntaram se o carro era nosso. O meu colega ainda pensou que era por causa de alguma transgressão de trânsito, mas eles quiseram levar-nos para o posto. Mostrámos o nosso cartão e perceberam que tinham metido água. Deve ter sido o dono da ourivesaria que os chamou... Já viu? Tomaram-nos por ladrões." Numa recente operação da Polícia Judiciária - que recebeu o nome "Pelicano Branco", provavelmente por o pelicano ser uma das imagens usadas em contrastes portugueses, no caso entre 1985 e 1998 para artigos de importação ou em segunda mão --, os "fiscais" da Casa da Moeda, chamados para auxiliar os agentes policiais, descobriram burlas como a que numa feira em Cascais misturava, na mesma bandeja, anéis de ouro branco e de prata. Delgado entrou na operação mas foi a uma colega sua que calhou identificar a marosca.

O dia a dia dos contrastadores, como é o seu caso, é porém bem menos excitante e acidentado. Sentado numa sala das 9 às cinco, muitas vezes com horas extraordinárias para "despachar" as colossais quantidades de "obra" que entram diariamente na recepção da contrastaria, António, com um martelo e uma cunha nas mãos e o auxílio de um torno, marca milhares de peças com os contrastes adequados a cada uma. "Vou até às três mil, mas tenho um colega que marca 4.500 peças por dia. Nem sei como é que ele consegue." Uma tarefa repetitiva mas de precisão, que implicou um curso com marcação "de clips e arames" e um exame final onde, no ano de António, passaram todos "menos um". Do concurso soube pela mãe, à época empregada da limpeza na casa. "Os meus pais eram de Areias, em Ferreira do Zêzere, e vieram para Lisboa comigo ainda pequenino. Ele para a Carris e ela para o trabalho de limpezas. Depois da tropa fui trabalhar para uma ourivesaria - arrumava o balcão, basicamente, não sabia mais nada - e quando soube que estavam a abrir vagas para contrastadores candidatei-me."

Na sala onde António trabalha, a da contrastaria propriamente dita, a maioria dos funcionários é mulher. Apesar da monotonia do trabalho e de se tratar de um espaço com circuito vídeo, o ambiente é, assegura, "cinco estrelas". "Damo-nos muito bem, brincamos, dizemos piadas." Quanto ao objecto do trabalho, suspira. "Vemos tanta coisa que já nem ligamos. Agora fazemos muitas peças daquela marca, a Pandora. É tudo igual. As peças de verdadeira joalharia dão mais gozo. Lembro-me de uma águia em ouro com as penas flexíveis, soldadas uma a uma, que quando se passava a mão mexiam. Era linda. E as caravelas em prata também são lindíssimas." Tanta intimidade com jóias e metais preciosos, porém, criou-lhe fastio. "Eu não uso nada, nem a aliança, veja lá. E nunca compro coisas de ourivesaria -- nem aos meus sobrinhos quando foram baptizados. Claro que a minha mulher tem uma pulseira Pandora, toda as mulheres têm. Olha para aquilo e só suspiro: 'Esta já está marcada'".

Com uma tabela por actualizar há 19 anos, este serviço, que conta 84 funcionários em Lisboa e Porto - mais no Porto porque, como explica Helena Felgas, directora da Unidade das Contrastarias da Casa da Moeda desde 2003, o grosso da indústria da ourivesaria portuguesa estava no Norte, antes de os ourives se terem rendido aos produtos de importação - está depreciado em mais de 90% em termos de inflação (em 2006, a última vez que o cálculo foi feito, já ia em 95%). O que, na perspectiva da responsável, implica um saldo negativo e a incapacidade de fazer face a solicitações crescentes. "Com a crise, desceu bastante o número de peças em ouro mas aumentou imenso o das de prata - dir-se-ia que se não há dinheiro, também não devia haver para berloques, mas o que marcamos dá para fazer de cada português uma árvore de Natal. Como temos, por lei, prazos muito curtos para entregar a obra que entra e nos chegam toneladas de todo o mundo, não temos mãos a medir. Temos neste momento 240 mil peças à espera de serem marcadas. E somos malvistos e malquistos por entregarmos tarde - mas com tão pouca gente, que podemos fazer?" Desde 1992 na Casa da Moeda, primeiro como directora do departamento jurídico e depois também dos recursos humanos, Helena Felgas preocupa-se com o deve e o haver da sua divisão e com a impossibilidade de proceder a contratações. "Repare, só daqueles berloques das pulseiras Pandora recebemos 80 mil peças por semana para marcar. No outro dia estava a ver sair caixas e caixas de mercadoria e fui ver quanto tinha rendido: 550 euros. Uma fortuna..."

Com preços de 4,99 euros por cada quilo de prata, percebe-se a ironia: para fazer 500 euros é preciso chegar aos 100 quilos, e uma tonelada renderá 5000 euros - à razão de sabe-se lá quantas "marcações" e horas de trabalho. Para arredondar as parcas contas, Helena Felgas começou a cobrar o armazenamento - "Há retalhistas que deixam cá a obra para não terem de pagar armazém" - e a criar cursos de avaliadores oficiais e de ensaiador/fundidor (aquele que, explica, funde o metal e o torna uniforme para poder ser vendido). Mas não esconde o desânimo. "Podíamos ser a galinha dos ovos de ouro... E damos prejuízo." A ironia suprema: o serviço que garante o carácter precioso das matérias mais dispendiosas e lhes acrescenta valor, é afinal, pobre.

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