O mundo à beira do abismo

Publicado a
Atualizado a

Qual o significado e quais as prováveis consequências para o mundo da atual guerra na Ucrânia, instigada pelo complexo EUA/OTAN e que, depois de anos em que parecia limitada e confinada a uma parte do território ucraniano, passou para um novo patamar, após a invasão russa?

Começo por concordar com aqueles para quem a estratégia dos Estados Unidos de montarem na Ucrânia uma armadilha na qual a Rússia caiu que nem um urso constitui uma espécie de fuga para a frente. Explica-o a possibilidade de o fim da ordem bipolar resultante do desfecho da guerra fria, com a derrota e o desmantelamento da antiga URSS, ser substituída não por uma ordem unipolar liderada pelo Império americano, como parecia previsível, mas por uma ordem multipolar. Nesta última, e como escreveu a 16 de março deste ano Jorge de Almeida Fernandes, na newsletter O Estado das Coisas, do jornal PÚBLICO, "as pequenas e médias potências já não seguem necessariamente as políticas das potências tutoras".

A China perfila-se, desde o início do novo milénio, como a provável potência dominante dessa eventual nova ordem multipolar (veja-se o seu papel nos Brics, a iniciativa da nova rota da seda e o recente acordo Arábia Saudita-Irão, promovido por Pequim). Por enquanto, as ambições chinesas parecem confinar-se ao domínio comercial e económico em geral, não se vislumbrando nenhuma estratégia de expansão militar ou propósito de exportar o seu modelo político para outros países, ao contrário dos EUA e demais potências ocidentais, mas o tempo dirá que tipo de império quer a China voltar a ser.
Sejam quais forem, entretanto, as específicas ambições do gigante asiático, as mesmas estão por detrás da decisão dos EUA de definirem esse país como o seu principal "inimigo estratégico". A criação da guerra na Ucrânia faz parte dessa fuga para a frente da principal potência mundial, pois trata-se de enfraquecer ou destruir a Rússia, para que, em última instância, a China não possa contar com o apoio do poderio militar de Moscovo. Os jogos perigosos em que países como o Reino Unido, Austrália e Japão, aliados estratégicos de Washington, parecem dispostos a participar no Pacífico fazem parte dessa estratégia. Sem esquecer, claro, a decisão da OTAN, cuja sigla portuguesa significa Organização do Tratado do Atlântico Norte, de estender a sua ação para o ... Pacífico.

Diante deste quadro, um facto é particularmente sintomático: a desistência da União Europeia de ser um poder global autónomo, para limitar-se a ser uma força auxiliar dos EUA. Isso está patente, desde logo, no conflito da Ucrânia. A UE poderia ter impedido a guerra no referido país, mas não o fez, o que, além das desgraças e tragédias provocadas por todas as guerras, tem as seguintes consequências: em vez de atrair a Rússia, país basicamente europeu e cristão, para a Europa, empurra-a para os braços da China; contribui para a estratégia dos ultra-conservadores americanos no sentido de reforçar a Nova Europa (os países autoritários do leste europeu), em detrimento da Velha Europa (as tradicionais democracias europeias); põe em questão as relações comerciais com a China, com consequências negativas para as economias europeias; e, por fim, minimiza a influência da Europa nos países do Sul, em detrimento da China e de algumas potências médias, nomeadamente árabes.

Não sou eu que o digo, mas, sim, o escritor e jornalista português Miguel Sousa Tavares (EXPRESSO, 17 de março de 2023): - "A pior geração de políticos europeus dos últimos 100 anos não consegue ver o que está diante dos seus olhos e, enquanto se compraz em declarações grandiloquentes, assiste à destruição sistemática da Ucrânia e arrasta-nos a todos para o abismo".

Diferentemente do alinhamento absoluto europeu, a posição maioritária, em África, relativamente ao conflito ucraniano tem sido de abstenção, mas o continente tem sido alvo de uma série de pressões, provenientes de todo o lado, para tomar partido. Como cidadão e intelectual africano, espero que os nossos países tomem o único partido possível neste caso, ou seja, o caminho da paz. Quer o complexo EUA/OTAN, quer a Ucrânia, quer a Rússia precisam de parar esta guerra, sentar-se à mesa das negociações e encontrar uma solução que satisfaça todas as partes e o mundo em geral.

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt