O incómodo desejo sexual dos deficientes mentais

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Aprimeira vez foi horrível. Senti-me escabrosa. A dor foi indescritível. Pungente. Mas também qual é a mãe que imagina um dia vir a masturbar o seu próprio filho, não é?" Maria não se chama Maria, mas pede que lhe ocultemos o nome. Há dores que não permitem um rosto visível. Nem sequer um nome certo. Maria é mãe de um deficiente profundo. O filho tem 20 anos e não anda, não come sem ajuda, não aprenderá nunca a falar. A sexualidade é apenas mais um dos aspectos da sua vida sobre o qual não tem qualquer domínio.

Chamemos-lhe João. João está deitado num sofá azul. O babete que tem ao pescoço contrasta com a camisa de homem, os gritos que vai dando destoam do seu corpo adulto. A mãe olha-o com a ternura de todas as mães. "É o meu bebé. O meu bebé grande", diz enquanto lhe afaga os cabelos. E depois volta ao assunto, que parece ser, uma vez mais, um contra-senso "Tenho de lhe mudar a fralda porque ele não sabe ir à casa de banho. Assim como tenho de lhe aliviar as necessidades sexuais. Não é, meu bebé grande? Não é?"

Não será fácil para uma mãe falar destas coisas. Maria suspira por diversas vezes, mastiga as palavras dentro da boca, ajeita a saia repetidamente, teme os julgamentos morais "Às vezes ainda me pergunto se estarei a fazer a coisa certa. Se os meus amigos e até familiares soubessem que o faço, aposto que me julgariam, talvez até imaginassem que abuso do meu filho. Só a ideia põe-me doente. Para mim, é um acto médico, uma prestação de cuidados. Mas como tenho medo do que os outros possam pensar, calo-me, não digo nada a ninguém".

O silêncio desta mãe é o silêncio de muitos pais de deficientes mentais. A sexualidade destas pessoas é algo que existe mas de que pouco ou nada se fala. Há mesmo quem imagine que um cidadão com deficiência mental não tem impulsos sexuais, como se fosse assexuado. Uma espécie de anjo. Isento de "pecado". Ana Allen Gomes, psicóloga, desmistifica esta ideia "Claro que estas pessoas têm impulsos sexuais! Porque do ponto de vista biológico, os seus corpos funcionam normalmente. Os rapazes têm barba, a voz fica mais grossa; às raparigas cresce o peito, alargam as ancas e aparece a menstruação. Como tal, são pessoas com impulsos sexuais como os nossos. Por muito que isso custe a uma sociedade que prefere fingir que não vê."

Maria também começou por não pensar. Fingia - também ela - que não via. Mas a incapacidade do filho obrigou-a a tomar uma atitude "Enquanto ele não se manifestou, confesso que não quis pensar nisso. Acho que quis acreditar que ele não havia de ter essas necessidades. Depois, quando comecei a vê-lo a tocar-se sem conseguir um alívio, achei que estava a sofrer e que me competia a mim, como mãe, fazer alguma coisa por ele."

Foi então que Maria conversou sobre o assunto com a médica de família. E foi a médica que a aconselhou a ajudar o filho a masturbar-se "Fiquei chocada, claro. Mas o meu filho não tinha coordenação motora suficiente para atingir o orgasmo. Tinha de ser ajudado. E quem melhor que uma mãe para ajudar um filho?"

Como acabar com o desejo?

Ivone Félix, terapeuta ocupacional e directora de uma instituição que acolhe cidadãos com deficiência mental, não se surpreende com a atitude que a sociedade em geral adopta "Se a sexualidade em si ainda é um tabu, imagine quando falamos de sexualidade de deficientes mentais! A sociedade tende a considerar estas pessoas como eternas crianças, merecedoras de piedade e, claro está, assexuadas."

Ivone Félix já viu de tudo nestes 20 anos de trabalho com deficientes mentais. Mas a política da avestruz continua a ser a atitude mais frequente "Os pais preferem nem pensar no assunto. Só começam a preocupar-se quando os filhos começam a ter manifestações em público. Masturbam-se, chegam-se mais às pessoas, dão beijinhos." É então que os pais se preocupam. E, segundo Ivone Félix, pensam: "Como é que vamos acabar com isto? O desejo implícito, quer de pais quer de profissionais, era que eles não tivessem sexualidade. Era menos um problema na vida de todos."

Um problema de difícil resolução, ainda que possível. Ivone Félix explica "A única forma de serenar esta sexualidade 'indesejável' é com medicação. E é evidente que há medicação. E é evidente que há alguns pais que a utilizam."

A medicação de que a terapeuta fala, não sendo específica para esse fim, tem a particularidade de produzir o efeito pretendido "Há muitos medicamentos que reduzem a líbido. Sei de pais que usam uns e outros bem doseados com o objectivo de acalmar esse 'problema' dos filhos."

Uma prostituta para o filho

No caso de João, a sexualidade resume-se a estimulação. "Os deficien- tes severos e profundos são pessoas que nunca, jamais, irão procurar um relacionamento afectivo-sexual com outras. Tudo se resume a masturbação, pura e simples", explica Ivone Félix. Depois, há os outros deficientes mentais, moderados e ligeiros, para quem é necessário um contacto com o outro, "um dar a mão, beijos, abraços e, também, ter relações sexuais". E é nestes casos que os problemas aumentam. Porque para muitos pais e técnicos, a possibilidade de estas relações ocorrerem é um verdadeiro problema.

Para José Esteves, a sexualidade do filho nunca foi um problema de maior. Pedro, 28 anos, tem síndrome de Down, mas, nas desordens cromossomáticas do seu corpo, o desejo permaneceu intocável. Aos 13 anos começou a estimular-se em público e a falar obsessivamente em sexo. O pior era a mãe, pouco aberta às questões da sexualidade "A minha mulher batia-lhe, dizia que ele era um porco. Tivemos grandes discussões. Mas, com paciência, tudo se ultrapassa."

José Esteves teve paciência. E uma mentalidade suficientemente aberta para encarar tudo com a normalidade possível "Ensinei-lhe que ele podia tocar-se, desde que o fizesse na intimidade. E arranjei uma prostituta para ele experimentar uma relação sexual." O pai di-lo com orgulho indisfarçável, de quem está certo de ter feito o melhor. "A minha mulher escandaliza-se: uma prostituta? Mas o que podemos esperar? Que ele arranje uma rapariga que goste dele, que casem e sejam felizes para sempre? Nestas coisas mais vale não ter ilusões."

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