"O filósofo é alguém com um papel ativo na sociedade"
Que seríamos nós sem as artes, a literatura, a poesia, a música e a filosofia? A professora Sónia Múrias dá uma resposta: "O essencial do ser humano acabaria por se perder." O que seríamos nós numa sociedade sem espírito crítico, sem análise, sem dimensão ética? A filosofia questiona: "Máquinas sem ética" ou "simplesmente humanos sem humanidade"?
Quer se queira quer não, a Filosofia é a disciplina que interage com todas as outras, defende Sónia Múrias, que ensina a cadeira há mais de 30 anos e que colaborou com a Escola Superior de Educação do Porto. Para a professora, licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras do Porto, é preciso olhar para a disciplina de outra forma, que tanto pode ser de um curso de Humanidades como de Ciências, que também pode formar estudantes para um emprego no ensino, como na política ou numa empresa.
É assim que acontece noutros países, que não em Portugal. Por exemplo, nos anglo-saxónicos. "Esta visão negativa da disciplina tem de acabar", argumenta Sónia Múrias, acrescentando: "É preciso reconstruir a imagem da filosofia, do filósofo estereotipado, como um erudito que está sempre nas nuvens, porque o filósofo é alguém com um papel ativo na sociedade."
A professora, da Escola Secundária Dr. Joaquim Gomes Ferreira Alves, em Valadares, Vila Nova de Gaia, em entrevista ao DN fala da pressão social, tantas vezes exercida nos jovens, para que não escolham um curso de Humanidades, ou até a Filosofia, mesmo que seja isso o gostassem de fazer. "A empregabilidade é muito baixa, mesmo no ensino começa a ser difícil." E, mais uma vez, assume, "tem de mudar".
Na escola de Sónia Múrias todos os anos os alunos são desafiados a fazer maratonas de debates. Durante um dia inteiro debatem sobre tudo, desde o planeta à ética, "e o entusiasmo dos alunos é sempre enorme". O mesmo acontece com as candidaturas às Olimpíadas de Filosofia, "costumamos ter tantos alunos a querer participar que temos de fazer uma pré-seleção. Os alunos fazem um ensaio e depois os professores avaliam os que têm melhores condições para ir às Olimpíadas Nacionais".
A motivação dos alunos quando é trabalhada é grande, é saber motivá-los. Em primeiro lugar é preciso que saibam que filosofia "não é só de filósofos mortos, mas também de vivos, que não é só de homens, mas também de mulheres".
A filosofia é a base do ser humano. Ponto.
Porque que é que a filosofia ainda é um bicho-de-sete-cabeças para os alunos? É preciso trabalhar mais a motivação para que seja uma disciplina tão valorizada como outras?
É verdade que muitos alunos chegam ao secundário com preconceitos e resistências à filosofia, mas é normal. É uma disciplina nova no secundário que trabalha competências que até aí não foram trabalhadas, e quando os alunos chegam a esta fase já ouviram dizer que é muito mais complexa do que outras e que tem um discurso muito mais abstrato. Isto assusta-os, mas é preciso que os professores também tenham em consideração que hoje os alunos chegam ao secundário muito crianças e sem estarem preparados para o pensamento abstrato, portanto, não se pode querer que façam um percurso muito rápido.
Isso é possível?
É preciso que façam uma aprendizagem da abstração. É preciso ajudá-los a perceber como se passa do concreto ao abstrato. Por exemplo, começo por trabalhar com cartoons, com pequenos filmes e não logo com textos filosóficos, porque isso assusta bastante. A filosofia trabalha o raciocínio, a capacidade de análise, crítica, competências a que não estiveram habituados no básico, e é preciso que vão percebendo isto devagarinho para se sentirem motivados.
Diz que no ensino básico não são trabalhadas competências que a Filosofia explora no secundário, considera que a Filosofia, como disciplina, deveria começar a ser ministrada mais cedo?
Há estudos sobre isso que apresentam resultados muito importantes sobre a aprendizagem da abstração e do desenvolvimento das características cognitivas. Há inclusivamente projetos sobre filosofia para crianças, como o de Lipman. Sei que já há colégios em Portugal que têm Filosofia para crianças, eu própria já trabalhei esta área e sei que os estudos feitos sobre esta matéria revelam que crianças que começam a aprender mais cedo Filosofia têm normalmente mais sucesso escolar, mais espírito crítico e, obviamente, efeitos muito benéficos no seu desenvolvimento cognitivo
Seria possível introduzir esta matéria nas escolas públicas mais cedo?
Na minha escola estamos a pensar nessa possibilidade curricular. Temos um grupo de professores que começaram a trabalhar agora sobre esta hipótese de oferta da escola. Está em cima da mesa, apesar de sermos uma escola pública, mas os benefícios demonstrados nos estudos são muito evidentes. Nada está definido, mas poderá haver uma hipótese de oferta enquadrada no âmbito da flexibilidade curricular.
Essa seria uma hipótese porque a Filosofia desenvolve o espírito crítico...
Essa parte da Filosofia é essencial e deveria ser mais valorizada. Por exemplo, temos tantos debates nas televisões, desde a questão do planeta à genética, do aborto ao género, e quantas vezes é convidado um filósofo para debater esses assuntos? Quase nunca. Se os nossos alunos vissem a debater nas televisões, além do deputado, do cientista, do padre ou do comentador mediático, um filósofo, se calhar olhavam para a Filosofia de outra forma, não como uma entidade abstrata, que não interessa a ninguém, ou que até é uma coisa só de homens.
É isso que se pensa?
Nas primeiras aulas tenho de lhes dizer logo: a Filosofia não é só de filósofos, é também de filósofas, não é só de filósofos mortos, também é de filósofos vivos. A ideia que a maioria dos alunos tem é que a filosofia parou na Grécia Antiga, têm uma visão completamente ultrapassada e não percebem o quanto é importante para pensar a realidade do mundo de hoje. Para pensar a vida, a política e tudo o resto.
Sendo assim, faz sentido que a Filosofia seja uma disciplina só para os cursos de Humanidades?
Não, a Filosofia poderia ser uma opção para outros cursos de Ciências. A ética é fundamental em Medicina, deveria ser transversal a todos os cursos, mesmo para as Engenharias, e, no entanto, está longe de ser uma disciplina reconhecida e valorizada. Temos tido casos de alunos de Ciências que fazem o percurso todo nesta área, com notas excelentes na Matemática e na Física, mas que passam para Humanidades porque não se sentem completos, e acabam por ter uma experiência muito positiva com a Filosofia, com a dimensão argumentativa, de análise e crítica que a disciplina desenvolve e que acabam por ir para Direito, Ciências da Comunicação, História e até Filosofia.
Mas também há muitos alunos que não escolhem Filosofia por entenderem que não têm saídas profissionais, há licenciados no curso que não estão a trabalhar com a área que estudaram...
Infelizmente há muitos alunos que não escolhem Filosofia por causa das saídas profissionais, mas é sobretudo no nosso país que não há saídas. Aliás, até a via do ensino está extremamente difícil para os jovens recém-licenciados em Filosofia, nem todos conseguem ser professores de Filosofia. É uma pena, conheço brilhantes jovens formados em Filosofia que não têm conseguido singrar no mercado de trabalho. Isto contraria o que se passa noutros países...
Quais?
Em Inglaterra, por exemplo, que é um dos países com maior produção filosófica publicada e que tem um dos cursos de Filosofia mais reconhecidos, como os EUA também, os licenciados em Filosofia são inclusivamente contratados para assessores políticos, para a gestão de empresas. E porquê? Porque o espírito crítico e a criatividade, competências que a filosofia desenvolve, são as competências que a sociedade de hoje precisa.
É isso que a sociedade quer?
Uma sociedade não quer jovens que só reproduzam o que toda a gente sabe, quer jovens que sejam capazes de pensar em alternativas, que sejam capazes de pensar diferente, de desenvolver o espírito crítico. Estas são as competências que estão a ser potenciadas nos países anglo-saxónicos. Nestes, a componente da Filosofia está a ser muito aceite também no mundo empresarial, na tecnologia. Há inclusivamente mestrados em Filosofia e Computadores, que é uma simbiose perfeita e que em Portugal ainda é impensável, mas para alunos de Ciências poderia ser um curso perfeito.
Estamos muito longe disso.
Estamos e creio que os media poderiam ter um papel preponderante se passassem a mensagem e a imagem do filósofo como alguém que tem um papel ativo e muito importante numa sociedade de informação em constante mudança como é a nossa, e não só a mensagem estereotipada e completamente errónea de que o filósofo é um erudito que está sempre nas nuvens, mas sim alguém com um papel ativo na sociedade de hoje. Mas esta é a imagem que há e que muitos alunos têm e que tem de ser desconstruída. Mas também é o nosso papel.
Em Portugal, nem todas as universidades têm curso de Filosofia, apenas há em três e nos últimos anos têm sido lançadas pouco mais de cem vagas para o acesso a nível nacional.
É lamentável, sem dúvida. Em relação à motivação dos jovens cabe-nos a nós, professores do ensino secundário, desenvolver esse papel - por exemplo, na minha escola devo dizer que tem corrido muito bem, temos muitos alunos que até escolhem fazer o exame de Filosofia para substituir a Biologia ou a Física, alguns para fugir a essas disciplinas, mas outros por vocação mesmo. Relativamente a outras medidas, e para se mudar a ideia de que a Filosofia é um bicho-de-sete-cabeças, terá de ser de outra forma e ao nível de políticas de educação. Há que criar formação de base, mas também são precisas mudanças nos currículos.
A Filosofia é mesmo a disciplina que pode fazer a diferença? Há alunos que dizem que os ajudou a pensar e a formarem-se como pessoas.
É a disciplina que interfere com todas as outras. É uma mais-valia e tenta dar esse contributo, mas não pode fazê-lo sozinha. Daí ser importante a motivação de outras esferas de reconhecimento social. Sabemos que há mais alunos de Humanidades a desistir do ensino superior do que de Ciências. É uma percentagem significativa e isso passa muito pelas representações sociais sobre as Humanidades em geral.
Isso porquê? Pela empregabilidade?
Há muito a ideia de que os cursos de Humanidades são um passo para o desemprego. Há muitos alunos que no 9.º ano não escolhem Humanidades por pressão dos próprios pais e da sociedade. Há pais que ainda têm muita dificuldade em aceitar quando os meninos dizem "quero ser escritor ou filósofo". Depois, temos muitos licenciados em Humanidades que acabam por ter de ir para outros países porque aqui não encontram oportunidades de empregabilidade.
É isso que tem de mudar...
Tem. Como já disse, há uma nova visão sobre esta questão nos outros países, em que há maior aceitação e valorização da figura do escritor, do filósofo, do intelectual como alguém que tem um papel ativo na sociedade. É uma viragem que está por fazer na nossa sociedade. É preciso dar a oportunidade aos jovens que podem fazer a diferença, precisamente pela sua capacidade e iniciativa, pelo seu espírito critico e pela sua fluência cada vez maior na língua estrangeira. Toda esta visão negativa acerca das Humanidades como um beco sem saída tem de ser reconstruída.
Como?
Há toda uma mudança que tem de ser pensada para ser feita de forma integrada. Nós, os professores, como principais mediadores do conhecimento, fazemos o que se pode, mas não se pode fazer mais com a pouca autonomia e reconhecimento social que nós próprios temos. Mas, sem dúvida, que com a sociedade que temos hoje o tempo é para pensar. É tempo para a Filosofia.