O drama da Ucrânia

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Alguns leitores parecem ter ficado chocados, para não dizer irritados, com a afirmação que reiterei no artigo da semana passada, segundo o qual o complexo EUA/NATO provocou a atual guerra na Ucrânia. Jamais imaginei que teria de explicar que "provocar" não é sinónimo de "desencadear". Será que os tempos do pensamento simplista (além de "único") vieram para ficar?

Vou desenhar: a invasão do território ucraniano pela Rússia foi um erro político-diplomático e, possivelmente, também militar (não sou especialista nessa área, pelo que não me arrisco a fazer previsões), mas não tenho dúvidas de que a decisão de Moscovo foi uma resposta (repito: equivocada) à provocação do complexo militar ocidental, a saber, o alargamento da NATO até à fronteira russa, contrariando os entendimentos estabelecidos após a queda do Muro de Berlim. Recorrendo a uma imagem que costumo usar a propósito desta maka, digamos que a Rússia caiu que nem um urso na armadilha que lhe foi montada.

Para que fique claro, acrescento que condeno o ataque russo à Ucrânia, desencadeado sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tal como sempre condenei os múltiplos ataques realizados pelas principais potências ocidentais, com destaque para os EUA, contra uma série de países em várias regiões do mundo, também sem o aval da ONU e com pretextos ainda mais inverosímeis do que os usados por Moscovo para invadir o território ucraniano. Muito boa gente que, presentemente, vocifera contra a Rússia jamais abriu a boca para condenar os numerosos ataques, agressões e invasões levadas a cabo ao longo da História pelo chamado Ocidente. Por isso, costumo recorrer a uma expressão angolana - "Juntos, mas não misturados!" - para sintetizar o meu posicionamento pessoal relativamente ao atual conflito na Ucrânia.

Algumas vozes, talvez embriagadas pela inqualificável cobertura da guerra na Ucrânia pela mídia mainstream do Ocidente, afirmam, candidamente: para que acabe a guerra, basta a Rússia parar.

Se é para descer até esse nível de indigência intelectual, tenho de lembrar que a guerra poderia ter sido evitada, se os acordos de Minsk tivessem sido cumpridos. A verdade, como se sabe, mas muitos parecem ter esquecido, é que se problemas complexos tivessem soluções simples, não seriam complexos.

A guerra da Ucrânia é uma questão altamente complexa. Caracterizá-la como uma batalha pela democracia é uma balela, pois não há diferenças de fundo entre os regimes de Moscovo e Kiev, em termos ideológicos, de funcionamento político interno (vide o tratamento dado pelos dois países aos seus dissidentes) e de organização da economia (basta atentar, por exemplo, no peso da corrupção nas duas economias). A guerra em questão não passa, na realidade, de um conflito geopolítico, com algumas questões tribais à mistura, como a disputa pelas regiões russófonas da Ucrânia. Uso o adjetivo "tribal" com o mesmo à vontade e tranquilidade com que supostos "especialistas" ocidentais costumam analisar os conflitos africanos.

Alguns observadores fora do mainstream entendem que a guerra da Ucrânia é o princípio do fim do Império americano. Segundo eles, a decisão de alargar a NATO até à fronteira russa foi uma espécie de fuga para a frente, a qual se há de virar contra o Ocidente em geral. Contudo, essa eventual discussão faz pouco ou mesmo nenhum sentido para as vítimas da guerra. É certo que, como ensina qualquer manual de História, todos os impérios acabam, mas, obviamente, o atual Império dominante não desaparecerá nos nossos dias.

O drama da Ucrânia é que não se vislumbra uma solução que ponha um fim definitivo à guerra que assola o país, o que terá de passar por resolver todos os fatores de fundo que estão por detrás do atual conflito. Se esses fatores não forem abertamente equacionados e estabelecidos em novas bases aceites por todos, a guerra poderá acabar, com a vitória de qualquer das partes, mas nada garantirá que o conflito não possa eclodir novamente a qualquer momento.

Só os falcões de ambos os lados sonham com o aniquilamento total do inimigo, indiferentes ao risco do potencial armamentista existente na região.


Escritor e jornalista angolano e Diretor da revista África 21

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