Haverá vida, na campanha americana, além da exposição cruzada das depredações sexistas e sexuais do candidato Donald Trump e do marido da candidata Hillary Clinton? Irão as façanhas íntimas dos dois septuagenários decidir os indecisos e indecisas dos Swing States, como tudo indica? Ou haverá vida e mundo, questões políticas determinantes, assuntos decisivos, além disto?.Essas, virão provavelmente depois e terão alguma importância. É que a partir de 9 de Novembro ou de 21 de Janeiro, o vencedor vai ter que lidar com algumas questões sérias, nacionais e internacionais. Uma delas é a volatilidade das alianças e o facto de alguns aliados-chave dos Estados Unidos terem, nos últimos meses, vindo a afastar-se, ou mesmo a entrar em colisão com Washington..É uma situação com a qual a "internacionalista liberal" Hillary Clinton ou o "nacional isolacionista" Donald Trump vão ter que lidar, a partir de 8 de Novembro. É um problema comum para os dois candidatos e talvez não seja muito diferente o modo como poderão fazê-lo..A EUROPA E A RÚSSIA.Logo no continente europeu, agrupado politica e economicamente na União Europeia e onde se localizam a maioria dos aliados e Estados-membros da NATO, a União Europeia, em crise depois do referendo britânico, corre o risco de se tornar uma "Amicale" de clubes vários, divididos por questões como o Euro e os Refugiados, e prontos a seguir caminhos isolados ou fragmentados..Com baixo crescimento económico, com uma hegemonia alemã mais resignada que desejada pelos próprios alemães, submetida à crescente resistência eurocéptica de forças políticas nacionalistas de direita ou populistas de esquerda, a União Europeia nunca esteve tão mal. A série de eleições à porta nos países membros - nomeadamente na Holanda, França e Alemanha - poderá acentuar mais ou menos o peso e o poder das correntes eurocépticas. Mas nada hoje é como era ontem..O principal vizinho da NATO é a Rússia, que foi o coração da URSS, e a razão da fundação da NATO. Quando os Estados Unidos - e a Europa Ocidental - ganharam a Guerra Fria, a ideia de triunfo da aliança atlântica atingiu o auge. Os políticos europeus esqueciam-se e faziam esquecer ao mundo o quanto tinham criticado Reagan, como o tinham tratado de americano básico, de actor de segunda, de cowboy e considerado utópica a sua ideia de vencer a Guerra Fria. Mas na euforia de 1989-91, preferiram deixar-se arrastar para o internacionalismo democrático, aplaudir o fim da História acelerar a integração política e a expansão ideológica..Com arrogância, aproveitando a confusão e humilhação da Rússia pós-soviética, entenderam que a NATO - vitoriosa na contenção - não precisava de ser reformada. E precisava - até porque o inimigo (a URSS) estava vencido como potência ideológica expansionista, e os partidos comunistas na Europa rapidamente iriam sumir-se ou reconverter-se, como sucedeu por toda a parte. Por uma curiosa vingança da História, iriam ser substituídos pelos descendentes do "renegado Trotsky" que, com algum folclore soixante-huitard e em nome de uma renovada correcção política, geraram os Podemos, os Blocos e afins. Só o PCP português sobreviveu à mortande..A Rússia foi muito maltratada nos anos noventa e o internacionalismo liberal triunfante nos Estados Unidos lançou uma guerra fria contra Moscovo, desde que Putin chegou ao poder e começou a pôr alguma ordem no país e a controlar os desmandos das máfias e dos oligarcas e a dar de volta à Rússia alguma coesão nacional..Ao contrário dos Estados Unidos, que desde 1812 não são invadidos e que só há quinze anos foram bombardeados na sua Homeland pelos terroristas da Al Qaeda, a Rússia, desde os mongóis aos alemães, passando pelos letões, pelos polacos, pelos suecos, pelos franceses, foi invadida, ocupada e saqueada ao longo dos séculos. Tem por isso algum nervosismo em relação às suas periferias perigosas e reage mal quando delas se aproximam muito. Como a Finlândia foi neutral na Guerra Fria, a Ucrânia também deveria ter passado a sê-lo quando a Guerra Fria acabou. Mas não foi, o que é mau para todos, sobretudo para a Ucrânia..Putin não quer restabelecer a União Soviética, nem é um Cossaco excitado, a cavalgar pela Europa conquistada. É um nacionalista russo que restaurou e quer manter o estatuto de potência da Rússia e que pratica uma Realpolitik baseada nos direitos históricos e num perímetro de influência tradicional. Aproveitou o cash do petróleo alto, manteve o segundo poder militar do globo (entre 2008 e 2013 Moscovo dobrou as despesas militares) e reagiu na Geórgia, na Crimeia, na Ucrânia, quando entendeu que interesses estratégicos da Rússia estavam em jogo. Agora foi na Síria, para não deixar perder a sua única base marítima mediterrânea..A kantiana e paradisíaca União Europeia, habituada a ser defendida pelos Americanos, queixa-se mas deixou cair ainda mais os orçamentos militares, permaneceu impávida enquanto os EUA reduziram a presença na Europa a 26000 homens..O que a Aliança euroamericana deve é não hostilizar a Rússia por questões internas da Rússia, mas entender as suas preocupações de defesa. E mostrar-se firme em relação às fronteiras da Aliança e aos equilíbrios geopolíticos, e não se deixar excitar nem instrumentalizar pelos apóstolos do internacionalismo democrático..A TURQUIA DEPOIS DO GOLPE.Outro problema é a Turquia, que tem as segundas Forças Armadas da Aliança e é um dos seus pilares político-estratégicos. Depois do golpe, intentona ou inventona do Verão passado, Ankara entrou numa guerra de palavras e de graves acusações com os Estados Unidos. Paralelamente fez uma aproximação e reconciliação com a Rússia. Apesar da rivalidade e inimizade seculares derivadas da vizinhança geográfica e dos imperativos geopolíticos, culturais e religiosos e, apesar dum contencioso recente em vários pontos e que culminou em Novembro de 2015, quando um F16 turco derrubou um bombardeiro russo em operações na Síria, Putin e Erdogan celebraram um encontro público de reconciliação em 9 de Agosto..As bases deste entendimento, à partida contranatura, têm que ver com afinidades electivas e de partilha de inimigos dos dois governantes nacional-autoritários; depois há uma margem de cooperação político-militar na Síria e nas regiões onde há inimigos comuns - como o Daesh. E há a cooperação económica, com a Rússia sujeita às sanções da EU e dos EUA. Estes também têm censurado e causado o desagrado a Erdogan. Incrementar o turismo e o comércio bilateral é neste momento positivo para russos e turcos e a opinião pública turca não mostra grande simpatia pelos Estados Unidos, apesar de no país estacionarem 5000 militares da USAF e cerca de 100 armas nucleares tácticas..Outro ponto que pode agudizar esta relação são as ligações do dirigente religioso turco exilado nos Estados Unidos, Fethullah Gulen, que Erdogan aponta como inspirador e eminência parda do golpe militar falhado, a Hillary e à Fundação Clinton..ÁRABES E JUDEUS.A Fundação, o casal Clinton e a candidata Hillary têm também estado debaixo de fogo por causa das dádivas recebidas do Estados do Médio Oriente - Arábia Saudita, Oman, Qatar e UAE. Os críticos lembram que se trata de Estados que perseguem os homossexuais e tratam as mulheres um pouco pior que Donald Trump....Outra aliada de sempre, a Arábia Saudita, está também confusa com a política norte-americana. Por muitos anos os sauditas foram, com Israel e o Egipto, os parceiros privilegiados de Washington na região. Agora, os novos governantes sauditas - o rei Salman e o Príncipe Herdeiro Mohammed, sentiram-se - como os Israelitas - atingidos pela negociação dos acordos com o Irão. E mais ainda quando no Congresso americano foi aprovada uma lei (JASTA - Justice Against Sponsors of Terrorism Acts) que permite às famílias de vítimas de ataques terroristas em território americano acusar em juízo um governo estrangeiro que considerem cúmplice ou apoiante dos terroristas. A lei foi aprovada por maioria esmagadora no Senado (97 votos contra 1) e por 348 contra 77 nos Representantes..O objectivo desta lei era o que os familiares das vítimas do 11 de Setembro pudessem pedir indemnizações ao governo Saudita, na base da teoria conspiratória que os acusa de responsáveis. Isto é ainda mais absurdo quanto, com uma semana de diferença, a Senado aprovara uma venda de tanques Abrams aos Sauditas, por mais de um bilião de dólares..O Presidente Obama acabou por ter de vetar a JASTA, mas os sinais estavam dados. E os sauditas, que já no passado se entenderam com Moscovo em questões de petrolíferas, voltam agora a fazê-lo nas negociações OPEC-Rússia para parar a queda dos preços do crude..ATÉ AS FILIPINAS.Outra aliança problemática parece ser, neste momento, a aliança com as Filipinas. O recém-eleito presidente Rodrigo Duterte protagonizou um incidente público com o presidente Obama a quem, no curso de uma reunião da ASEAN, se referiu em termos insultuosos. Duterte é um líder populista que se notabilizou pelos métodos expeditos que utilizou no combate aos narcos, quando presidente da Câmara da cidade de Davao..Na reunião bilateral à margem da conferência da ASEAN, Obama tinha colocado como ponto principal da Agenda as questões de "direitos humanos" nas Filipinas, o que originou os comentários insultuosos de Duterte. O filipino pediu depois desculpas e Obama minimizou a questão..Só que, posteriormente, Duterte voltou a criticar os Estados Unidos, a referir o seu papel no passado como poder colonial opressor das Filipinas, a menorizar a cooperação americana e louvar a chinesa. Também o seu encontro com o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe correu muito bem. Ao mesmo tempo, exprimiu grande simpatia pela China e pela sua política na região, apesar dos problemas dos limites com o mar do Sul da China, depois do Tribunal Internacional de Haia ter decidido contra Pequim..Quando, acabadas as últimas salvas de maledicências, insultos e character assassination, os eleitores americanos tiverem decidido qual dos dois candidatos representa o mal menor para eles e para o mundo, e o candidato vencedor assumir o governo no dia 20 de Janeiro, ver-se-á como lida com estas questões de risco e fragmentação de alianças. Entre a tentação isolacionista de um e o internacionalismo ideológico de outro, os riscos para a Europa e o mundo são significativos. Preparemo-nos.