O dia em que não salvei Maria Callas

Publicado a
Atualizado a

Em 1958, tinha eu dez anos, fugi para Paris, onde fui trabalhar como carpinteiro para a Ópera. Vocês podem dizer que isso é inverosímil. Eu até digo mais, é mentira. Mas se vocês se puserem a interromper-me a todo o momento não acabo a crónica. Então, dizia, eu estava na Ópera de Paris em 19 de Dezembro de 1958. Eu tinha uma missão a cumprir.

Era uma grande noite, pela primeira vez Maria Callas ia cantar em Paris. O ano, para ela, começara em escândalo. Em janeiro, ela cantava a Normaem Roma e, ao fim da segunda ária, problemas de voz ou feitio de prima-dona, regressou ao camarim para não voltar. Os espetadores indignaram-se e dirigiram-se ao hotel de Callas, para lhe gritar insultos sob a janela. Depois, ela ainda arranjou pretexto para se zangar com o patrão do Scala de Milão, o templo da ópera.

Para desanuviar, a Callas partiu em digressão. Entre outros lugares cantou a Traviata no lisboeta São Carlos, um triunfo. Mas ela precisava de um palco como Paris, por isso estava ali e o programa dizia: "Grande Noite de Ópera - Maria Meneghini Callas", com bilhetes a 20 mil francos antigos (cerca de 350 euros). Haveria transmissão televisiva pela Eurovisão para oito países europeus, uma audiência de cem milhões. Há um vídeo no Youtube com essa transmissão.

Meneghini, porquê? Era do nome do marido, Giovanni Battista Meneghini, encontrado no início da sua carreira em Itália e com quem casou em 1949. Mais velho trinta anos, com a profissão improvável de dono de uma fábrica de tijolos mas com a condição exata para viver com uma deusa: devoção total. Foi com Meneghini, já seu empresário, que ela se tornou um diva dos palcos, aprimorou a voz, adequou o reportório e adelgaçou-se. Cheia, como é comum nas cantoras de ópera, a Callas fez regime a ponto de ganhar a silhueta que levava a alta-costura a implorar que vestisse os seus modelos. Não era só forma, era convicção de uma filosofia de estar nos palcos, para que o dramático da voz não fosse sabotado pela gordura da soprano a fazer de Madame Butterfly...

Que sabia eu disso? Nada, até a ver nessa noite. O apagado Presidente René Coty iria dar o poder a De Gaulle no mês seguinte, aquela era a sua saída em glória. Ele subiu a escadaria da Ópera incomodado com as trompetas da fanfarra da Guarda Republicana que tocavam a Aida, de Verdi. Três anos depois, no seu enterro, De Gaulle discursou: "A modéstia está para o mérito como as sombras para as personagens de um quadro: dão-lhe força e dimensão." Coty sabia que estava ali, naquela noite, para deixar a diva brilhar. Ele, o modesto, mas também as celebridades da plateia e camarotes: Brigitte Bardot, a Bégum (viúva de Aga Khan), os duques de Windsor, Juliette Gréco, Jean Cocteau... E um nababo grego chamado Aristóteles Onassis.

Quando o pano se levantou, cercada pelo coro, Maria Callas tinha um vestido escarlate e uma écharpe que as suas mãos, com os braços cruzados, agarravam nos ombros. Dizia-se que ela tinha um colar e brincos de um milhão de dólares. Não vi. Dos bastidores e de soslaio, vi-lhes os dedos longos, o nariz mediterrânico e os olhos fechados. Abriu-os e começou a rezar Casta Diva, da abertura de Norma, de Bellini, um cântico à Lua. Nunca vi um pôr-de-sol (ou nascer) tão belo. Foi uma epifania, alguma coisa me dizia para fazer alguma coisa. No intervalo, o tal grego foi ao camarim de Maria Callas, de quem era, então, só amigo. Não sei o que me deu, corri para ele com uma ripa nas mãos. No tal vídeo da Eurovisão, veem-se à 1 hora, 13 minutos e 37 segundos, polícias fardados a correr nos bastidores, entre os meus companheiros carpinteiros que mudavam o décor. Eu falhei a pancada.

Foi isso que lhe fui dizer ao cemitério de Père Lachaise, no passado dia 2, fazia Maria Callas 90 anos. Fui pedir-lhe desculpa por não a ter protegido de um tolo que iria trocá-la por uma qualquer Jacqueline Kennedy.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt