Transplante que envolveu casal foi um sucesso.Antes de dar um dos seus rins à mulher, José Pereira teve de responder se estava consciente que não podia pedir o seu órgão de volta. Um dia antes de ser um dos protagonistas do primeiro transplante renal entre marido e mulher, as suas palavras tinham bom humor e tranquilidade. O casal circulava por um hospital que era "quase" seu e a espera de dois anos por esta cirurgia parecia estar longe na memória. Não foram dúvidas ou receios a atrasar o processo, mas a ausência de lei, a demora da regulamentação e outros obstáculos como a falta de um seguro. Ana Pereira, insuficiente renal há dois anos recebeu ontem um terceiro rim do marido e disse que faria o mesmo por ele: "Teria a mesma coragem. Não gostava muito, mas dava--te na mesma", sussurrou com um olhar provocador ao seu dador..A cirurgia foi realizada ontem durante a manhã no Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide (Lisboa) e, passadas poucas horas, José Pereira já tagarelava fluentemente no recobro, dizem os médicos. O transplante correu bem, assegurou António Pina, o chefe da equipa de transplantação envolvida, e o período de sobreposição foi quase perfeito, ou seja, as intervenções no dador foram praticamente terminadas em simultâneo com a receptora. O sucesso da intervenção, caberá agora ao organismo de Ana, que sofria de insuficiência renal crónica, o que a obrigava a realizar oito a nove horas de diálise peritoneal por dia..Antes de José ser o dador oficial, o filho Pedro antecipou-se. Tinha acabado de fazer 18 anos e a opção de dar um rim à mãe era assumir a sua maioridade. "Tive à espera de fazer 18 anos. Quando os fiz, anunciei a decisão". .Pedro e o pai foram fazer exames de compatibilidade ainda em 2006. Mas se os dois eram compatíveis, a mesma sorte ditou a exclusão de Pedro por ter uma assimetria renal, um dos diagnósticos que excluem um potencial dador. Para os pais, a opção acabou por ser melhor. "É normal que os pais prefiram dar um órgão a um filho e não o contrário", diz Pedro..Os exames vieram fazer depender o transplante de uma lei que foi publicada em Junho, que alargava a dádiva de órgãos em vida a cônjuges e amigos. Mas a regulamentação da mesma apenas foi publicada no final de Novembro. Mesmo com noites mal dormidas à custa da máquina de diálise, Ana e José pressionaram o hospital, as entidades governamentais e apelaram à comunicação social para que estes obstáculos fosse resolvidos. "Se não tivéssemos feito nada, ainda estaríamos à espera de fazer o transplante", disse ao DN a professora de 39 anos, quando finalmente não havia impedimentos à sua cirurgia..Em Janeiro, quando a data do procedimento estava prestes a ser decidida, a Entidade de Verificação da Admissibilidade da Colheita para Transplante (EVA) do hospital voltava a desiludir o casal, agora porque não havia seguros para o dador, tal como noticiou o DN. Quando o problema ficou resolvido, o corpo traiu Ana e uma infecção adiou a operação uma semana..A cirurgia, que envolveu 12 profissionais, veio tarde, mas foi um sucesso. Ana acabou por ficar com três rins, em vez de dois, mas há quem fique com quatro ou cinco, disse o nefrologista do casal Domingos Machado. Se parece um excesso, as estatísticas falam por si: a sobrevivência a 5 anos é de 100% e a esperança de vida é o dobro da que envolve órgãos de cadáveres, diz António Pina, um dos cirurgiões. 95% dos rins de dador vivo transplantados estão funcionais ao fim de um ano, o que começa a justificar o peso de 10% que os transplantes com dador vivo já têm no total do País. .O cirurgião acredita que a nova lei vai trazer mais pares para transplante e que "se houver enchentes, o hospital terá de se adaptar. Já temos vários em análise e a seguir os trâmites legais", diz. Além deste estão outros cinco, consanguíneos, em espera. .O casal está a recuperar para regressar a casa e dormir, pela primeira vez em dois anos, sem os ruídos da máquina de diálise. "Acho que vou sentir falta. Vou estranhar", diz José Pereira. Domingos Machado falou com orgulho deste casal: "Isto é do melhor que a humanidade tem".