O desencanto da contenção

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A história é "maldita", as decorrências não aliviaram o lado negro deste enredo em que, como de costume, Carson McCullers não precisa de grande cenário nem de sumptuosas personagens para manter a tensão (e os desvios) da primeira à última linha. Da pequena cidade, da família disfuncional, do ambiente fechado de um café, passamos neste caso para outra dimensão perfeitamente delimitada: uma base militar. Da ingenuidade teimosa e dos desvarios congénitos que trabalharia mais tarde - em Frankie e O Casamento, de 1946, e Balada do Café Triste, de 1951 -, a autora "salta", neste caso, publicado em 1941, para personagens que nos são servidas em permanente conflito com as respetivas existências: um capitão, profissionalmente ambicioso, que aceita por comodismo o caso amoroso da mulher e que se debate, de forma crescente, com pulsões homossexuais; a sulista que não tem pejo em humilhar o marido e em exibir o amante, além de abusar do álcool e de se "evadir" em saídas a cavalo; um major, adúltero, que despreza a fragilidade da mulher e idolatra a energia da amante; uma outra mulher, diminuída desde a morte da filha (ainda bebé), doente, conhecedora dos "atropelos" do marido mas capaz de adiar uma solução drástica; um soldado de estranhos hábitos - como correr nu pela floresta e montar em pelo - que se deixa enfeitiçar pela mulher do capitão, a quem observa às escondidas, chegando a passar horas no breu do quarto desta sem ser detetado.

McCullers é absolutamente magistral, porque sucinta, quase seca, na descrição dos choques e dos desencontros desta gente. No que lhes toca, as figuras postas em desfile são também cobaias de uma contenção (a que não é totalmente descabido chamar hipocrisia) que as impede de explodir ou de partir para um antagonismo mais exacerbado, para um confronto aberto, para algo que ultrapasse as normas de conduta daqueles que, à boa maneira sulista, preferem o que é sinuoso ao que é direto. Temos direito a festas, jantares, passeios, serões, receitas, "crimes e escapadelas", tudo na sábia medida que a escritora (que tinha 24 anos quando lançou Reflexos num Olho Dourado) distribui numa narrativa que, de novo, não abre espaço a tempos mortos.

Paralelamente, os passos dados para que daqui nascesse um filme - memorável - de John Huston. A escritora já não conseguiu colaborar nas últimas versões do guião, por estar demasiado doente - acabou por morrer duas semanas antes da estreia e o último colaborador no argumento chamou--se Francis Ford Coppola. Escolhida Elizabeth Taylor para o papel principal, Huston foi sugerindo atores para o desempenho da perturbada figura do seu marido: William Holden, Robert Mitchum, Lee Marvin. Liz fez finca-pé: queria voltar a contracenar com o seu amigo Montgomery Clift. A Taylor chegou a avançar com o seu próprio salário como caução para o seguro que ninguém aceitou fazer a favor de Monty, olhado como muito instável. Só que Clift acabou por morrer, vitimado por um ataque cardíaco, e Elizabeth voltou a não ceder: queria Marlon Brando, antigo rival de Monty e depois seu amigo e confidente. Ganhou ela e ganhou o filme.

Esta nova edição, juntamente com a de Relógio sem Ponteiros, fecha uma "estrela de cinco pontas" (leia-se cinco livros) que, ao longo de 2017, nos trouxeram de volta às edições portuguesas o essencial de McCullers, assinalando o centenário do seu nascimento, o cinquentenário da sua morte e, acima de tudo, a sua perenidade como caçadora e pintora de almas pouco óbvias. Mas muito compensadoras.

Reflexos num Olho Dourado
Carson McCullers
Trad.: Marta
Mendonça
Ed. Relógio d"Água
112 páginas
PVP: 13,05 euros

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