o descanso do velho guerreiro

Depois de meio século a defender  causas sociais, um dos mais  conhecidos rostos da luta contra o 'apartheid' retirou-se da vida pública
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Um dia, estava eu em São Francisco, quando uma senhora acelerou o passo e gentilmente cumprimentou-me dizendo: 'Olá Arcebispo Mandela.' Como se quisesse levar dois pelo preço de um."

A história, contada em 2004 pelo sorridente arcebispo emérito da Igreja Anglicana da Cidade do Cabo, é muito mais do que um engraçado engano da pessoa que o abordou. A associação entre os dois homens é tudo menos descabida. Desmond Mpilu Tutu é, a par com o antigo presidente da África do Sul Nelson Mandela, um dos mais famosos rostos da luta contra o regime do apartheid.

No passado dia 7, Tutu fez 79 anos. Foi esse o dia que escolheu para se retirar da vida pública. A decisão foi anunciada em Julho, altura em que explicou que havia chegado "o tempo de abrandar, beber chá com a mulher durante a tarde, assistir a jogos de cricket e viajar para visitar os filhos e netos".

Vai deixar os cargos que até agora assumia em inúmeros organismos, como universidades e organizações de defesa dos direitos humanos, mas continuará envolvido no grupo Elders e no Grupo de Laureados do Nobel. Criado por Nelson Mandela, o Elders é uma organização independente constituída por proeminentes líderes a nível mundial como Koffi Annan, ex-secretário das Nações Unidas ou Jimmy Carter, 39.º presidente dos Estados Unidos.

Tutu - casado com Leah, a mulher com quem teve quatro filhos - cunhou o termo "Nação Arco-Íris" para designar a África do Sul da era pós-apartheid. "Cada um de nós está intimamente ligado ao solo deste bonito país, assim como estão as árvores jacaranda de Pretória ou as mimosas de Bushvele - uma nação arco-íris em paz consigo e com o mundo", afirmou em 1994, pouco depois de Nelson Mandela ter sido eleito Presidente nas primeiras eleições livres no país.

O homem que dançou na abertura do Mundial de Futebol da África do Sul foi bispo do Lesoto entre 1976 e 1978, altura em que assumiu o cargo de secretário-geral do Conselho de Igrejas sul-africano. Usou o poder concedido pelo cargo para levantar a voz contra o regime, imposto pelo Partido Nacional em 1948. Apelava ao desinvestimento como forma de pressionar o Governo.

Com o fim do apartheid, Tutu foi escolhido para liderar a Comissão da Verdade e Reconcialiação, formada para investigar os crimes cometidos durante os anos de segregação racial e facilitar a transição para a democracia.

À pergunta "o que queres ser quando cresceres?", o menino que nasceu em Klerksdorp respondia invariavelmente que o seu sonho era ser médico. Um desejo que se intensificou depois de ter contraído tuberculose aos 12 anos, a mesma idade que tinha quando se mudou com a família para Joanesburgo. Queria poder encontrar a cura para a doença. Na verdade, chegou a ser admitido numa faculdade de Medicina, mas os escassos recursos económicos dos pais não lhe permitiram matricular-se. O pai, Zacheria, era professor e a mãe, Aletta, cozinheira.

Foi nessa altura que surgiu a oportunidade de estudar para ser professor, aproveitando bolsas concedidas pelo Estado. Quando terminou a licenciatura, começou a dar aulas de Inglês e História no liceu onde tinha concluído o ensino secundário alguns anos antes. Chegava a ter quatro turmas ao mesmo tempo, algumas com 80 alunos.

Ainda não tinha 30 anos quando a sua carreira no ensino terminou. O homem que hoje é conhecido como a consciência moral da África do Sul recusou-se a pactuar com uma lei decretada em 1953 pelo Governo, o Bantu Education Act, que aprofundou a segregação racial no ensino.

Foi assim, sem conseguir vislumbrar muitas oportunidades para o futuro, que enveredou pela religião. Depois de ter apresentado uma candidatura, foi escolhido pelo bispo de Joanesburgo para estudar na Faculdade de Teologia.

Quando numa entrevista concedida em 2004 lhe perguntaram o que poderia o bispo ter visto nele que fosse diferente dos outros jovens, Tutu, respondendo com a frontalidade que o caracteriza diz simplesmente que, na altura, "não havia muitas pessoas licenciadas que quisessem ser padres". "O bispo deve ter pensado que eu era um achado raro." Em 1960, com 29 anos, foi ordenado padre da Igreja Anglicana começando a seguir as pisadas do seu mentor e também activista, Trevor Huddleston.

Lutador incansável contra todo o tipo de discriminação, Tutu nunca duvidou que a África do Sul se libertaria do apartheid. "Sabia que não havia nenhuma maneira de que uma mentira pudesse prevalecer sobre a verdade, a escuridão sobre a luz, a morte sobre a vida."

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