O demónio de Varginha

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Em 1996, três adolescentes de Varginha, cidade no Sul de Minas Gerais, viram o demónio. No caminho para casa, Kátia e as irmãs Liliane e Valquíria desviaram-se uns metros do percurso quotidiano e ficaram frente a frente com uma criatura agachada, de mais ou menos metro e meio, cabeça grande e careca, olhos encarnados, boca pequena, língua comprida, três cornos na cabeça, pele castanha e oleosa, mãos de três dedos e pés de dois.

"Mamãe, eu vi o Capeta", gritou Liliane, que como as outras correu para casa o mais depressa que pôde.

A vizinhança perguntou: "Não seria o Mudinho, que costuma andar por aí agachado?" (Mudinho era um jovem da região com problemas mentais que, claro, à exceção dos cornos, da pele castanha e dos detalhes das mãos e dos pés, se assemelhava à descrição das meninas).

"Que Mudinho, que nada, era um animal estranho", responderam as jovens.

Na véspera, noutro ponto da cidade, o casal de agricultores Eurico e Oralina estavam descansados a ver a novela quando foram alertados para o ruído do gado desenfreado. Da porta, viram um objeto voador do tamanho de um autocarro, cinzento, a deitar muito fumo e a circular durante uns 40 minutos. "Não dormimos nessa noite", lembram.

Dona Leila, bióloga que coordenava o zoológico de Varginha na época, registou a morte por aqueles dias de cinco animais, das espécies veado-catingueiro, anta e jaguatirica. "Sem explicação, simplesmente morreram."

Na noite da aparição relatada pelas três jovens, dois agentes da polícia foram enviados ao local para fazer uma ronda debaixo de enorme tempestade. Segundo relatos do que guiava, uma criatura atravessou-se à frente do veículo. O colega, Marco Chereze, pegou-a e colocou-a no banco traseiro. Chereze, de 23 anos, morreria um mês depois. "Demos-lhe os antibióticos mais fortes mas o sistema imunológico dele desapareceu, vi isso no máximo uma ou duas vezes na vida", conta o cardiologista Cesário Furtado, 35 anos de profissão.

O demónio? Um ET? Realidade? Fantasia? O certo é que o fenómeno atraiu espíritas, ufólogos, jornalistas, curiosos. O exército, os bombeiros e a polícia envolveram-se. Consta que a NASA também. Escreveram-se livros. Multiplicaram-se boatos e teorias de conspiração

Mas, vinte anos passados, não fosse a existência de um Museu do ET e o comércio de pequenas réplicas da estranha criatura vestidas com as camisas dos principais clubes de futebol do Brasil, do capeta nem sinal. Varginha caiu na pacatez de antes. Até à semana passada.

O Boa Esporte, clube de futebol da cidade, foi notícia internacional. Como a Chapecoense, vítima de trágico acidente aéreo, a equipa consegue relativo sucesso mesmo gerida de forma paroquial, familiar; mas, ao contrário da Chape, hoje o clube mais querido do Brasil, o Boa preferiu tornar-se o clube mais detestado.

Contratou Bruno, o guarda-redes que em 2010, quando jogava no Flamengo, participou no assassínio da amante Eliza Samudio para não pagar pensão a um filho em comum. E no seu esquartejamento. E na ocultação do cadáver, cujo paradeiro dos restos se recusa a divulgar.

Entrevistado, Bruno não demonstra arrependimento, argumenta que a sua prisão não devolve a vida de Eliza e pede uma oportunidade. O Boa deu-lha, segundo o seu presidente, Rone Moraes, de acordo com a "lei brasileira e com a lei de Deus" - mas uma e outra têm muito que se diga.

Bruno não foi solto por ter cumprido a pena de 22 anos a que foi condenado; ele está fora da prisão porque um juiz negligente adiou o julgamento de um recurso. Não é portanto um ex-criminoso que, como todos, teria o direito inalienável à ressocialização; é um assassino que fugiu da prisão por um túnel, no caso um túnel escavado pelo próprio sistema judicial brasileiro.

Até as filhas de Rone Moraes, uma de 19 e outra de 16, criticaram a decisão do pai de contratar um feminicida. E grupos de mulheres varginhenses fizeram manifestações indignadas em frente ao estádio. "A outra criatura era o nosso ET, Bruno é o nosso demónio", disse uma delas.

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