O caminho acaba na Peneda

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Os primeiros peregrinos já estão na estrada, saíram às cinco da manhã de Ponte da Barca e ainda lhes faltam 25 quilómetros a subir e descer a serra, entre vestígios do fogo que também caminhou por estas paragens. Laurinda quis pagar com a força que ganhou nas pernas a saúde que pediu à senhora da Peneda, e na tarefa envolveu o irmão José e o sobrinho Fernando. Este vai ajudando a tia com algo mais do que a sua companhia, é "uma peregrinação com Tom-tom". Tem o GPS que traça a rota a seguir religiosamente numa mão e um saco com riscas azuis e brancas, onde carrega mantimentos, água e papel higiénico, na outra. Mas o satélite falha na sinalização do vale encantado onde está o santuário, cravado no interior do Gerês, não foi tido em conta por quem fez o programa.

Se o peregrino soubesse que a aldeia mais próxima é a Gavieira ficaria com uma ideia aproximada da terra que ainda terão de palmilhar. A Peneda é lugar, não chega a ter junta de freguesia e o café só costuma abrir ao fim-de-semana. Aqui vivem 20 a 30 pessoas durante o ano - com excepção dos primeiros oito dias de Setembro, em que passam a ser centenas. A família Rodrigues ainda vem longe, desidratada com o calor que já se sente antes do meio-dia, mas aqui está tudo pronto para os receber.

Há vendas de cassettes e CD em cada esquina, barracas improvisadas com mantas cheias de símbolos da Playboy, sem que para tal exista uma explicação lógica. Quem aqui vem trazer a sua fé e devoção pode alimentar o corpo num dos muitos restaurantes itinerantes estacionados nos caminhos para a igreja, uma nova modalidade de fast-food que consiste na utilização de uma camioneta como estrutura-base, a partir da qual é erguida toda uma sala com mesas, resguardada com um oleado preso ao dito veículo. Parecem pertencer todos à mesma cadeia, Caxadinha, que às vezes se escreve Cachadinha e tem nomes próprios diferentes, Quim e Toni consoante o calibre da carrinha e da comida. Na maior, o lema: pare para ver e ser visto, é melhor parar aqui. As casas da localidade também oferecem nesta época, quase sem excepção e sem licença, refeições quentes.

Os "dez contos" que os vendedores ambulantes pagam diariamente por um pedaço de chão, desde o meio dia de dia 1 até ao meio dia de dia 8, a semana da peregrinação que encerra o estio, vão para os cofres da Confraria da Peneda, que gere o santuário desde sempre. Para aí são também encaminhadas as esmolas de gente piedosa e crente nesta pequena imagem de madeira e capa de veludo azul, a contrastar com a grandiosidade do local. É uma réplica: a original, uma Virgem Maria de pedra com Jesus ao colo, foi roubada nos anos 20. O moderno restaurante e hotel também são da Confraria, tal como os abrigos de granito típico bem recuperados, com aquecimento a óleo.

Há três versões para o estabelecimento de uma capela neste lugar, com montes verdejantes de um lado e a fraga da Meadinha do outro, percorrida por uma cascata nos meses de Inverno. "A aparição terá ocorrido a 5 de Agosto de 1220", conta Manuel Fernandes, o orgulhoso mesário da Confraria. Se surgiu a uma pastora ou a um criminoso foragido nestes montes ermos, não há unanimidade. Pode ainda ter acontecido que os cristãos, na sua fuga da invasão moura, tenham transportado a imagem até estes pastos. O que se sabe é que uma capela deu lugar a outra, e a outra, até que o actual santuário, imponente nas duas torres, foi construído em 1856. Os 19 escadórios que percorrem a via sacra são posteriores.

A devoção sente-se mais ao ar livre do que no interior da igreja, branca e dourada. Ao mesmo tempo que dois homens vão pendurando as luzes que animarão a noite de vigília nas auréolas de santos de pedra, mulheres de negro, sempre mulheres, percorrem o calvário, as mãos percorrendo as contas do rosário. Nascimento do filho de Deus de um lado, morte do outro: a perspectiva dramática acaba por se perder quando uma camioneta de cerveja estaciona no enfiamento da via sacra, substituindo-se no papel de destino da subida em relação ao santuário. As mulheres prosseguem a profissão de fé, orações murmuradas, cabeças baixas, muitas voltas a cada capela onde repousam imagens naïf da vida de Cristo.

A noite das concertinas, a meio da semana, será a mais animada, segundo o irmão da Confraria da Peneda - a cujos 500 membros se pode juntar qualquer católico com a fé devidamente atestada pelo pároco da sua freguesia. Este sempre foi um lugar acarinhado pelo povo do Minho, as semelhanças com o Bom Jesus de Braga a saltarem à vista. Quem aqui vem nunca foi a Fátima; não há comparações. Alguns juntam esta devoção com a de São Bento da Porta Aberta, noutro canto do Gerês.

Não é o caso da família Rodrigues, que já venceu 15 quilómetros mas teve de entregar a carga - GPS incluído - a um familiar que passou de carrinha. Está quase a chegar ao fim esta peregrinação nortenha, a última do Verão. Laurinda tenta sorrir mas sai-lhe um esgar de cansaço, o rosto desfigurado pelo calor. Vai valer a pena, é só nisso que pensa.

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