O batom na cueca

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O capelão do navio foi apanhado com uma smoking pistol (pistola a fumegar) na mão", lê-se em A Aventura do Gloria Scott, conto de 1893 de Arthur Conan Doyle, cujo herói é um jovem Sherlock Holmes.

Foi lá, dizem os especialistas, que nasceu a expressão que é hoje sinónimo, não apenas no mundo criminal, mas também no político, ou no cruzamento entre ambos, de "prova irrefutável de culpa", na forma, alterada com o tempo, de smoking gun (arma a fumegar).

No Brasil, a locução equivalente à anglo-saxónica smoking gun talvez não seja tão elegante mas é, provavelmente, mais eloquente e, seguramente, mais divertida: batom na cueca. O batom na cueca é a arma que fumega, é o flagrante que, inapelável, denuncia o crime.

Eis um exemplo de batom na cueca ainda a fumegar na imprensa: o jornal O Estado de S. Paulo noticiou dia 22 que dois pastores evangélicos, sem ligação formal ao governo, distribuem verbas milionárias do Ministério da Educação a prefeitos escolhidos a dedo Brasil afora. O batom apareceu na cueca no dia seguinte, nas páginas do concorrente Folha de S. Paulo, num áudio no qual o ministro Milton Ribeiro, também pastor, não só admite o esquema como o atribui a uma ordem de Bolsonaro, em pessoa. Na sequência, mais batom: prefeitos denunciam que os pastores oferecem as tais verbas públicas em troca de dinheiro e de barras de ouro.

Outro exemplo: só meses depois de recusar 70 milhões de doses de vacina da Pfizer a metade do preço, que teriam poupado a vida a milhares de compatriotas, o Presidente decidiu comprar uma vacina; mas o imunizante, indiano, seria adquirido 1000% mais caro do que o preço de mercado de forma a beneficiar intermediários - funcionários do Ministério da Saúde, militares na reserva e pastores (são outros, há muitos). Um deputado bolsonarista soube do crime e denunciou-o ao Presidente, que nada fez. Eles contaram a história - o batom na cueca - na Comissão Parlamentar de Inquérito da covid-19 e Bolsonaro não desmentiu.

Por décadas, Bolsonaro e família desviaram os salários de dezenas de assessores para o bolso, num esquema estimado em 29 milhões de reais. O primogénito Flávio Bolsonaro até comprou uma mansão de seis milhões em dinheiro vivo e a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu na conta 21 cheques de Fabrício Queiroz, apontado pela polícia como operador do esquema. Walter Ferraz, amigo e colaborador de 30 anos de Bolsonaro, disse à revista Veja no início do ano que era o Presidente quem assinava tudo - "isso é o batom na cueca", resumiu ele.

O ministro do Turismo continuou no governo mesmo depois de coordenar trapaça milionária com candidaturas femininas falsas, o do Ambiente só saiu após se tornar alvo de inquérito por contrabando de madeira e o da Justiça, considerado até então um modelo de honestidade pela extrema-direita, bateu com a porta acusando, com provas de batom na cueca, o Presidente de aparelhar as polícias para se proteger dos seus crimes.

Houve até o caso, quase literal, de batom na cueca do líder parlamentar bolsonarista, Chico Rodrigues, apanhado pela polícia com 30 mil reais escondidos nas nádegas.

No comício do lançamento da pré-campanha, no entanto, Bolsonaro, ladeado pelo presidente do seu partido, preso por envolvimento no Mensalão até 2019, e por Collor de Mello, cujo cadastro dispensa mais apresentações, manteve que no seu governo "não há corrupção".

É preciso, para usar outra expressão local, muita cara de pau.

Jornalista, correspondente
em São Paulo

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