Novo ciclo
epois de na primeira volta das presidenciais francesas ter tido pouco menos de metade dos votos da extrema-esquerda e da extrema-direita juntas, Emmanuel Macron foi à ronda decisiva também como íman do voto anti-Le Pen. A sua legitimidade era, por isso, dupla: tanto expressava uma via positiva para a reforma de França como uma manifestação de inevitabilidade eleitoral totalmente desprovida de lealdade ideológica. Apesar do momentâneo alívio sentido em muitos setores da sociedade francesa e latitudes da União Europeia, a verdade é que a amplitude eleitoral de Macron seria sempre uma das suas fragilidades. E, mesmo que tenha dobrado a parada com a maioria parlamentar, essa ascensão meteórica teria, mais dia menos dia, um confronto com a erosão do estado de graça, aliás curto no tempo. Uma das lições da política ocidental contemporânea é mesmo o fim do estado de graça como interlúdio esfuziante da consolidação política, tal a pressão diária ao ruído, à voragem do infotainment e ao preenchimento mandatório dos vazios noticiosos. Não há tempo para a estabilização das vitórias e é neste hiato que fenómenos como os coletes amarelos fazem o seu caminho, numa massificação antissistémica bem mais profunda do que a mera contestação a mais um aumento de impostos.
O que se tem passado em França sugere três ângulos de análise interligados. Primeiro, parece pouco consistente que uma novidade partidária (como o En Marche), sem um aparelho territorialmente consistente, desprovida de uma base coesa de lealdade política e de parlamentares experientes, tenha força sustentada na cada vez mais competitiva arena política europeia. Trump, por exemplo, evitou essa via e optou por controlar um partido do sistema, alterando-o por dentro. Segundo, é cada vez mais duvidoso que um político possa vencer em França com um programa reformista nacional e europeu e o consiga executar, o que implica concluir que o Estado francês é tendencialmente irreformável sem um nível alto de contestação violenta em permanência. Isto conduz-me ao terceiro ponto, que passa por considerar o reformismo francês como o mecanismo que dota Paris de outra autoridade política para exigir a Berlim que atue de braço dado nas grandes reformas da UE, o que no roteiro de Macron quer dizer defesa comum e zona euro. É neste bloqueio que estamos.
O momento europeu é particularmente complexo porque há uma mão-cheia de riscos convergentes e coincidentes no tempo e no espaço. Em Berlim existe a sensação de fim de ciclo, mesmo que a sucessão na liderança da CDU pareça suave e pacífica. A saída política de Merkel acontece em paralelo à fragmentação partidária e à variação constante de eleitores entre partidos, abrindo um ciclo político nacional de constantes coligações multipartidárias, lentas na sua oficialização e nos respetivos processos de decisão. Isto é totalmente novo na Alemanha, embora consolide o quadro já existente na maioria dos Estados membros, e chegará ao próximo Parlamento Europeu saído das eleições de maio de 2019, com os naturais reflexos na composição e fraqueza política da próxima Comissão Europeia. Os próximos anos vão obrigar toda a gente a lidar com a fragmentação partidária e a contrariar a lentidão das decisões para evitar entregar o poder aos vários populismos.
Em convergência com este quadro franco-alemão, Espanha e Itália estão igualmente a consolidar um roteiro de instabilidade interna provocado pela erosão bipartidária, aliada a podridões reputacionais de muitos dos seus políticos. Se pensarmos que estas quatro economias dominam o espectro macroeconómico da zona euro, estão em disfuncionalidade e já têm equilibradores a norte liderados pela Holanda, percebemos os riscos sistémicos que aí vêm. Juntemos a falência da credibilidade bipartidária inglesa provocada pelo Brexit, e percebemos as vulnerabilidades de Portugal como uma economia aberta que assenta os seus interesses permanentes nos equilíbrios continentais e atlânticos, em particular nos quatro grandes da zona euro em transformação interna e nos dois atlânticos em crise de identidade profunda. A grande questão que deveríamos estar estrategicamente a debater e a pensar é como garantimos a preservação desses interesses num quadro político ocidental em erosão acelerada.
Parto do princípio de que o fortalecimento da união económica e monetária é para levar a sério e que faremos tudo para que a pressão dos calendários acelere as decisões pela sua reforma, evitando mais vulnerabilidades na próxima crise. Parto também do princípio de que queremos manter uma presença no círculo preponderante das decisões comunitárias, marcando uma posição de afirmação numa fase de fraqueza política desse centro. E que não abdicaremos da defesa dos valores da sociedade aberta e do respeito pelo Estado de direito, ameaçados sobretudo a leste. E percebo que a nossa arquitetura de relações externas fora da UE possa valorizar o nosso papel no quadro dos cada vez mais competitivos equilíbrios comunitários. Mas tudo isto exige debate, qualidade estratégica, negocial e decisional. Bom senso e frieza. E nunca, mas nunca, cedermos ao voluntarismo dos negócios ou à dependência excessiva de um novo e entusiasmante porto de abrigo.
Vivemos tempos decisivos na Europa, no Ocidente e em Portugal. A conclusão da semana é, no entanto, outra: quem está a perceber isto melhor do que nós parece ser mesmo a China.
Investigador universitário