No tempo em que os icebergues visitavam a nossa costa. Portugal na Idade do Gelo

João Zilhão, investigador da Universidade de Lisboa, é autor do livro Portugal na Idade do Gelo - Território e Habitantes, oportunidade para recuarmos dezenas de milhares de anos e descobrirmos um mundo diferente. Icebergues orlavam o nosso litoral, em terra, a população não ultrapassaria os 10 000 indivíduos, numa paisagem de charneca arborizada. Em conversa com o autor, desvendamos o território e as gentes através da arqueologia paleolítica.
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O que o motivou a deter-se neste seu livro no período da Idade do Gelo em Portugal? É uma síntese do trabalho que vem a desenvolver há anos?
Recebi, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o convite para escrever este livro. Ponderei o assunto e respondi com um sim. Fi-lo por várias razões. Fazia falta uma síntese acessível ao grande público e também aos estudantes sobre as fases mais antigas da nossa Pré-história, nomeadamente o Paleolítico. O estudo nessa área teve desenvolvimentos significativos nos últimos 25 a 30 anos, com a descoberta da Criança do Lapedo, a Arte Rupestre do Vale do Côa, o Crânio da Aroeira. Estive ligado a muitas dessas descobertas. Os resultados estavam publicados, sobretudo em inglês, em revistas internacionais, também em relatórios e em vários livros como o de António Martinho Baptista [O Paradigma Perdido: O Vale do Côa e a Arte Paleolítica de Ar Livre em Portugal]. A própria monografia da Criança do Lapedo é técnica.

Comecemos por sinalizar no tempo o período a que chamamos de Idade do Gelo, até porque há diferentes momentos dentro deste vastíssimo tempo. Quer situar-nos?
O Paleolítico é a primeira fase da História da Humanidade e começa com o princípio do Período Quaternário, há cerca de 2,5 milhões de anos, que coincide com o aparecimento do género Homo nos registos fósseis. O Paleolítico terminou há cerca de 11 700 anos com o fim da Idade do Gelo. Ou melhor dizendo, com a entrada no Período Interglaciário que vivemos atualmente, a que chamamos o Holocénico. Do ponto de vista da história longa da Terra, o Holocénico não é mais do que o Período Interglaciar, aquele em que as calotas de gelo se retraem, semelhante àqueles que vivemos, por exemplo, há 125 mil anos e há 400 mil anos. A ideia de chamar a Idade do Gelo para o título do meu livro visa acentuar que essas condições ambientais, aquelas que marcaram o aparecimento da Humanidade e a sua evolução, são uma condicionante importante nesse processo.

Olhando para o território que é hoje Portugal, qual o clima que aqui se sentia em comparação com outras regiões do hemisfério norte?
Dentro das condições de frio que referi, as regiões do sul da Europa eram privilegiadas. É certo que há 20 000 anos veríamos icebergues ao largo da costa portuguesa, mas a Inglaterra e a Escandinávia, por exemplo, estavam sob 1Km de gelo. Onde hoje temos a França, a Alemanha, a planície austro-húngara, o clima era equivalente ao do Alasca atual. De facto, onde havia melhores condições para a Humanidade na Europa era na Bacia do Mediterrâneo e, nesse contexto, na Península Ibérica.

Tem uma estimativa das temperaturas que se sentiam no nosso território?
Há estimativas que nos podem dar uma ordem de grandeza. No caso da Região Centro em Portugal, nas épocas mais frias, a temperatura média anual poderia ser 6ºC inferior à atual. Ou seja, estamos a falar de temperaturas na ordem dos 10ºC/11ºC, o que colocava esse território fora do limite de vegetação a que nos habituámos a ver na paisagem atual, como as oliveiras, os sobreiros, as azinheiras. No mar, a situação era ainda mais desfavorável, devido às correntes de água fria que vinham de norte para sul, relacionadas com o degelo. Estimativas apontam para uma temperatura da água do mar na nossa costa a rondar os 6ºC no inverno. É para este mundo que remeto os leitores do meu livro. Neste mundo, os humanos viviam da caça e da recoleção, com populações 1000 vezes inferiores, em número, do que as da época atual.

Quais os fatores que contribuíram para o mundo ter vivido este período mais frio?
Os oceanos são uma influência moderadora do clima em todas as eras. A geometria dos oceanos tem mudado nos últimos milhões de anos em função da configuração dos continentes. Por exemplo, na época dos dinossáurios, a posição das massas continentais era diferente da atual. Com a fragmentação de dois supercontinentes, a Laurásia, a norte, e Gonduana, a sul, houve uma migração das massas continentais em direção aos polos. Isso fragmentou a circulação das águas, e formou-se uma calota de gelo permanente no Polo Sul há 15 milhões de anos. A formação do istmo do Panamá impediu, ao nível do equador, a ligação do Pacífico ao Atlântico e este último ficou mais suscetível à circulação fria de norte. Esse é um processo que acelera o começo do resfriamento geral da Terra que vem desde o chamado Período Miocénico. A formação do istmo do Panamá é um contributo importante para acentuar uma tendência que vinha de trás.

Contraria a imagem de uma Idade do Gelo tomado por um manto branco em toda a Europa e escreve que essa visão se prende com a história da investigação. Porquê?
Porque a investigação começou em França, na Alemanha, nos Países Baixos, em Inglaterra. A imagem do Paleolítico, inicialmente designado pelos investigadores do século XIX como a Idade da Rena, veio da fauna que aparecia nas jazidas e que incluía o mamute. Tal, parecia reconstituir uma vida ligada à sobrevivência na tundra. Era uma imagem correta para essas regiões, não para as nossas. Mas, foi a partir daí que se divulgou junto do grande público a ideia de uma vida no Paleolítico associada a esse ambiente. É como pegar nos esquimós e dizer que são representativos do modo de vida de todas as populações que vivem na América do Norte [risos]. Há que corrigir esta ideia. Quando falamos da população da Europa, até porque foi no nosso continente que se iniciou o estudo deste período, há também que ver que esta foi uma gota no oceano da vida no planeta naquele período. A maioria dos humanos vivia em África.

Em relação ao sul da Europa, quando se acentua a investigação sobre este período?
Sobretudo em Espanha e Itália, onde os investigadores percebem que a vida no Paleolítico era diferente. Há a sublinhar o trabalho que se iniciou no Mediterrâneo espanhol e no sul de Itália, ainda na década de 1940, embora ainda fosse um trabalho limitado. O peso da informação que saía continuava a vir do norte da Europa. Nas últimas décadas, a realidade mudou, porque começou a haver equipas a trabalhar de forma mais sistemática em Espanha e, também, em Portugal, embora aqui o impacto dessa atividade se note nos últimos 20 a 25 anos. Importa dizer que o peso de informação acumulada nos países do Centro e do Norte da Europa é importante para o trabalho que se faz nas novas regiões do Paleolítico mais a sul. Eles, por seu turno, precisam desta investigação a sul para terem uma ideia mais além do que conseguiram descobrir, como a sequência das culturas, a fauna, a vegetação e alargá-la a uma escala continental. Há um diálogo frutífero entre as diferentes regiões. O facto de metade da humanidade paleolítica europeia ter vivido na Península Ibérica, não quer dizer que as outras populações sejam menos importantes.

Houve um intercâmbio entre estas populações?
Há processos que se operam à escala continental. Por exemplo, quando olhamos para a arte do Côa, percebemos que é muito semelhante àquela que se fazia em França, a 1000km de distância.

Como se explica isso?
A comunicação através das redes de acasalamento, das relações sociais, entre estes grupos de muito baixa densidade, era muito intensa. Tinham de manter relações a longa distância para que uma jovem ou um jovem em idade nubente tivesse a certeza de encontrar parceiro ou parceira. Ou seja, havia que encontrar humanos para além das 20 ou 25 pessoas que viviam nos 50km em torno da área onde habitavam. Isso explica aspetos comuns da cultura material e o facto de, apesar do isolamento relativo, as populações terem evoluído em paralelo, cada uma com a sua forma de organizar a subsistência. No fundo é uma necessidade de sobrevivência.

Estima-se que a população no território que hoje é Portugal seria de 13 500 indivíduos há perto de 30 000 anos. Confirma?
Há uma estimativa algures entre os 10 000, mais milhares, menos milhares. Uma população que ascenderia a perto dos 90 000 indivíduos na Península Ibérica. A capacidade de carga num território mais a sul, com mais plantas, mais animais e, logo, mais alimento para os humanos, permitia populações mais densas. A diferença pode ser de 10 a 20 vezes mais densidade de gente na Península Ibérica do que, por exemplo, no sul da Polónia ou nas planícies da Ucrânia.

Olhando para o clima e para a paisagem, que recursos alimentares estariam disponíveis?
Temos por vezes alguma dificuldade em aceder a essa informação, a da subsistência, porque as plantas não fossilizam, à exceção da matéria vegetal em condições excecionais ou quando está carbonizada. Por vezes consegue-se encontrar vestígios através de análises a resíduos conservados no tártaro dos dentes ou nos utensílios de sílex e, daí, extrair restos da assinatura química dos amidos, por exemplo. Sabemos seguramente que aqueles humanos consumiam bagas, pinhão, nozes, tubérculos. Há cerca de 20 000 anos, nas margens do lago Tiberíades [Mar da Galileia], escavaram-se vestígios carbonizados de milhares de restos de trigo e cevada selvagens, o que dá ideia de que esses recursos, quando disponíveis no Paleolítico, eram explorados. Mais seguro, é a analise dos restos de animais com esqueleto, que fossilizam. O que vemos aí? No caso português, a subsistência era à base da carne de veado, entre outros cervídeos, alguns dos quais já extintos, mas que há meio milhão de anos existiam, como o Haploidoceros mediterraneus, uma espécie de veado com hastes muito compridas e em forma de foice, o cavalo e o auroque, o antepassado selvagem do boi. Depois, encontramos os pequenos animais, como as aves, o coelho, a tartaruga terrestre. À beira-mar, encontramos os moluscos, os peixes, a foca. Era um mar mais frio e muito produtivo.

No nosso país onde podemos encontrar vestígios da ocupação do território neste período? Por exemplo, no seu livro, refere a nascente do rio Almonda, perto de Torres Novas.
Só se encontra aquilo que se procura [risos]. É preciso profissionais, equipas e recursos. Há locais que são mais favoráveis à preservação dos vestígios, como o caso dos maciços calcários. Daí falar-se dos homens das cavernas. Uma falácia, é por aí se encontrarem mais vestígios. Ou seja, o que ali entra já não sai, conserva-se bem. É preciso é que consigamos dar com elas. É o caso do sistema do Almonda. Essas jazidas estavam tapadas, foi necessário descobrir uma forma de as revelar. Ao serem reveladas e exploradas dão-nos informação sobre momentos-chave desse último meio milhão de anos. Isto, sem falar do Côa. O último caso foi o da Barragem da Ribeiradio, no Rio Vouga, onde, ao fazer-se o trabalho arqueológico prévio ao enchimento da albufeira, se encontraram vestígios da época daqueles do Côa.

Para o seu livro leva dois registos fósseis que, de certa forma, nos ajudam a identificar os nossos antepassados: o fóssil encontrado na Gruta da Aroeira, em 2014, e a Criança do Lapedo, encontrada em 1998. O que nos revelam estes fósseis?
No que respeita ao fóssil da Aroeira, penso que se pode dizer com alguma segurança que terá entre 424 e 436 mil anos. Representa as populações que, há cerca de meio milhão de anos, estavam em transição entre a forma ancestral de toda a Humanidade, o chamado Homo erectus, que apareceu em África há perto de um milhão e meio a dois milhões de anos, e a -umanidade atual. São populações que do ponto de vista da anatomia do esqueleto são mais robustas, retêm arcadas supraciliares muito espessas. A capacidade craniana está perfeitamente dentro da margem de variação da Humanidade atual. O crânio da Aroeira e outros fósseis da mesma época, tomados no seu conjunto, permitem avaliar que, nas capacidades de ouvir e de emitir os sons da linguagem falada, seriam como nós, e, portanto, também o seriam do ponto de vista cognitivo. A tecnologia era a que era, naturalmente, porque como sabemos esta é cumulativa. Tinham lanças, redes, utensílios em pedra. Eram caçadores e são a raiz, no nosso território, de tudo aquilo que vem depois. O curioso nesse crânio é que vem contribuir para iluminar com outra luz o debate sobre a variação existente nas populações europeias naquele período. Havia uma teoria de que a Humanidade daquela época se dividia em espécies diferentes, com características próprias que se mantinham por isolamento reprodutivo. Certos pormenores da anatomia do crânio eram tomados como indicadores dessas diferenças fundamentais entre espécies diferentes, em diferentes regiões. Neste crânio coexistem características que supostamente definiriam essas espécies diferentes. Ou seja, vem no sentido de ideias alternativas, com as quais concordo, segundo as quais a ideia de que as diferenças entre fósseis destas épocas remotas é condicionada pela homogeneidade muito grande que existe nas populações humanas atuais. Na realidade, somos nós que somos anormalmente homogéneos. Por exemplo, há estudos que mostram em populações atuais de chimpanzés, todos da mesma espécie, que a diversidade ao nível da morfologia do crânio é maior do que aquela que existe no interior da Humanidade tomada no seu conjunto, incluindo tanto a atual, como a fóssil.

Olhemos para a Criança do Lapedo.
Esta criança de há 28 000 anos revela-nos, através da identificação de características, que, basicamente, é como nós, embora com alguns aspetos do esqueleto que são próprios dos Neandertais. Esta descoberta reabriu a questão sobre se os Neandertais eram assim tão diferentes de nós. Ou seja, se afinal não eram assim tão diferentes da Humanidade do Paleolítico Superior, como o Cro-Magnon, que todos consideramos como nossos antepassados. E isto do ponto de vista do comportamento, da cognição, da inteligência, da cultura. Do ponto de vista da anatomia, as diferenças que existiam não eram suficientemente importantes para obstar a que as populações se misturassem. Na época, há 25 anos, quando publicámos essas hipóteses foi altamente controverso, mas atualmente é um tema pacífico e foi demonstrado também pela pesquisa genética.

No seu livro retorna à teoria da miscigenação e à presença tardia do Neandertal no nosso território.
Sim, é normal, estamos no "fim do mundo". Repare, se a emergência de populações com esqueleto mais grácil, a que chamamos moderno, se dá em primeiro lugar em África, a difusão através de acasalamentos e de redes de interação social, vai fazer-se na Eurásia nos pontos de contacto entre continentes. Daí, seguiu para oeste. Portugal é o extremo ocidental da Eurásia pelo que se explica esta miscigenação tardia.

É investigador da Universidade de Lisboa, à qual regressou após uma carreira por universidades de Espanha, França, Alemanha e Reino Unido. Foi o responsável científico pela criação do Parque Arqueológico do Côa e sua classificação como Património Mundial, e pela descoberta do Menino do Lapedo. Foi fundador e diretor do Instituto Português de Arqueologia. Presentemente, é o Investigador Principal do projeto Arqueologia e evolução dos primeiros humanos na fachada atlântica da Península Ibérica (continuação), com escavações no Sistema do Almonda, em Torres Novas, e em duas jazidas do Vale do Nabão, a Gruta do Caldeirão e o Abrigo da Senhora das Lapas, em Tomar.

Portugal na idade do gelo
João Zilhão
Fundação Francisco Manuel dos Santos
240 páginas
29 euros

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