No passado fim-de-semana o verniz estalou entre o Número Um e o Número Dois do Conselho de Transição da Soberania (constituído após o golpe que destronou o ditador Omar Bashir em 2019), respetivamente o general Abdel Fattah al-Burhan e o "semi-general" Mohamed Hamdan Dagalo, popularmente conhecido por Hemetti. "Semi-general", já que nunca foi membro do Exército Nacional, mas antes um líder carismático no Darfur, com capacidade para recrutar e mobilizar homens, para os intentos do ditador Bashir. Logo aqui, podemos começar a perceber o princípio das incompatibilidades entre estes dois atores principais da semana em curso..Trata-se claramente de uma herança da fase final dos quase 30 anos de regime liderados pelo ditador Omar Bashir (1993-2019), já que a guerra no Darfur iniciada em 2003, permitiu-lhe a iniciativa/solução de concentrar as várias milícias Janjaweed do Darfur, numa unidade paramilitar em 2013, de nome Forças de Apoio Rápido (FAR). Estas, foram o apoio que permitiu a estabilização no leste do país, reprimindo violentamente as iniciativas e vontades de secessão ao longo da longa fronteira com o Chade e parte da fronteira com a República Centro Africana a sudoeste. As FAR cumpriram a sua missão e não foram de imediato desmanteladas. Muito pelo contrário, foram crescendo exponencialmente ao longo dos anos, tornando-se numa unidade mercenária ao serviço de Bashir, para este as usar em conflitos regionais vizinhos, como aconteceu no Iémen e na Líbia. É aqui que os números impressionam, já que se começaram em 2013 com cinco a seis mil homens em armas, em 2016/17, já estavam a enviar 40 mil homens para a guerra no Iémen, em apoio à Arábia Saudita. Quando estes regressaram, mil foram de imediato enviados para a Líbia, em apoio ao marechal Haftar. Ou seja, Bashir continuou a instrumentalizar as FAR, dando-lhes missões no exterior, vasta experiência de guerra, que poderia também converter em guarda pretoriana, quando eventuais sinais de reviralho se manifestassem. Estes chegaram em dezembro de 2018, por via de manifestações contra a crescente inflação e custo de vida. Em abril de 2019, o Exército Nacional, liderado pelo também ministro da Defesa e vice-presidente de Bashir, o general Ahmed Awad Ibn Auf, "tira o tapete" ao ditador e Ibn Auf declara-se presidente do país, suspende a Constituição e inicia-se um processo de transição de poderes de militares para civis ainda nesse mesmo ano, com a nomeação de Abdalla Hamdok enquanto primeiro-ministro (PM)..O papel das FAR no golpe de 2019, foi de apoio às ações do Exército Nacional, nomeadamente na repressão às manifestações pró-Bashir que se seguiram e em junho, estes paramilitares ficam ainda mais conhecidos pelo "Massacre de Khartoum", com 100 mortos contabilizados e muito provavelmente com outros 100 lançados ao Nilo atados a pedras e tijolos e nunca encontrados, nem contabilizados oficialmente. Esta "pornografia de guerra" teve o seu lado positivo, já que permitiu a criação do Conselho de Transição da Soberania, logo no mês seguinte, agosto. Este Conselho incorporou militares, oposição civil e demais forças vivas do Sudão, como sindicatos e associações profissionais, um corpo legislativo/executivo que "governou" o Sudão até ao golpe seguinte..Segue-se o golpe de outubro de 2021 com os atuais rivais Mohamed Hamdan Dagalo, o "Hemetti das FAR", lado-a-lado com Abdel Fattah al-Burhan que, entretanto, tinha substituído Ibn Auf na liderança do Conselho Militar de Transição. As razões para este regresso ao "absoluto militar" no Sudão, deveu-se às pressões que o "Liberdade e Mudança", principal agregador e porta-voz da oposição fez no seio do Conselho de Transição da Soberania para um acelerar da transição dos poderes na totalidade para os civis. Por outro lado, as reformas económicas levadas a cabo pelo governo interino do PM Abdalla Hamdok, levaram de novo as populações à rua em protesto. Quando há mais do mesmo para ambas as partes, militares e civis, prevalecem as armas! Assim foi detido e destituído o PM Hamdok e suspenso o Conselho de Transição da Soberania, que na realidade apenas tinha sido criado por via das pressões internacionais, para evitar que o Sudão se tornasse num Estado pária, tal qual o Afeganistão fora em tempos, esquecido no tempo e no espaço..Al-Burhan anuncia a formação de um Governo de tecnocratas e estabelece o prazo de julho de 2023 para a realização de novas eleições..O estabelecimento desta data para as eleições é assinado em 2022 entre militares e civis. Há duas semanas foi assinado novo acordo para uma transição de poder, mas uma "batata quente" chamada Forças de Apoio Rápido (FAR) e a sua integração no Exército Nacional começou a bloquear todo o processo. Perante isto, o pragmático al-Burhan declarou as FAR enquanto grupo rebelde, pensando "matar dois coelhos com uma declaração só". Tirava um rival de cena que lidera 100 mil homens em armas e remetia para a clandestinidade um exército oficial e não oficioso (em 2015 declarada Força Regular e em 2017 uma lei foi aprovada indicando as FAR como Força de Segurança Independente), que lhe poderia fazer frente a qualquer momento..Um dado importante para se perceber a dinâmica entre estes dois exércitos é o facto de as FAR, desde o início, serem geridas pelos serviços secretos, embora aquando no terreno estivessem sempre sob comando de um militar do Exército Nacional. Este detalhe levanta o véu, para os entendidos, sobre as rivalidades sempre existentes entre forças de segurança, sob a mesma bandeira e as "urticárias" decorrentes da gestão de vontades contraditórias..Por outro lado, Alaaeldin Nugud, da Associação Profissional Sudanesa, signatário no último acordo de entendimento em 2023, refere que o mesmo é muito contraditório quanto ao processo de transição, já que uma das partes não estava verdadeiramente comprometida com a transição. O general Abdel Fattah al-Burhan, atual "CEMGFA" disse estar comprometido e assinou o papel, uma vez mais para não tornar o Sudão num novo pária, mas na verdade o que quis impor no texto assinado era a independência total dos militares face ao processo de tomada de decisão, sem este passar pela aprovação civil. Para Nugug, o "Hemetti das FAR" estava de boa fé, porque a contínua pacificação e o caminho para um Sudão mais democrático seriam o garante da manutenção de todo o seu adquirido pessoal e acumulado desde os tempos de Bashir. A saber, minas de ouro, criação de gado e demais infraestruturas relacionadas com ambos negócios. Hemetti terá mesmo dito, antes de assinar, "espero que estejamos todos verdadeiramente comprometidos no caminho para a democracia", sinal evidente de que sabia que o seu rival al-Burhan não estava na mesma sintonia..Por outro lado, a importância e influência da Irmandade Muçulmana no seio do Exército Nacional e nas cadeias de televisão e rádio foi determinante para o fracasso do processo, já que diziam abertamente que não era acordo para ser cumprido. Por isso mesmo, Mariam Al Mahdi, líder do Partido Nacional da Umma (da Nação Islâmica), refere uma "surpresa esperada", acrescentando às pressões da Irmandade Muçulmana, as pressões dos anteriores fiéis do ditador Omar Bashir, que insistiam que o acordo de 2023 não deveria ser assinado, justificando-se com os seus interesses corporativos, que ficariam em risco, caso se caminhasse no sentido da democracia..Neste momento temos Hemetti a chamar al-Burhan de "assassino islamista" e al-Burhan a chamar as FAR de milícia. Os ingredientes para o início de uma guerra civil generalizada no Sudão estão em cima da mesa e tiveram episódio no domingo que confirma esta prospectiva. Apesar de ambas as partes terem acordado um cessar-fogo de três horas, entre as 15.00 e as 18.00, proposto pela Nações Unidas, para a evacuação e apoio a civis, o mesmo não foi respeitado. Outro sintoma de pré-guerra civil, são os combates, incluindo bombardeamento aéreo estar cada vez mais a alastrar para zonas residenciais e não para zonas militares, ou de interesse estratégico para ambas as partes..Antes disso, referir que há países vizinhos interessados neste caos, como é o caso do Egipto do general Abdul Fatah al-Sissi, cujos políticos e militares nunca apoiaram os acordos de 2022 e 2023. Porquê? Porque não interessa ao "ditador eleito" ver uma democracia a florescer literalmente "debaixo das suas barbas", da mesma maneira que nunca interessou ao Paquistão ter a seu lado um Afeganistão diferente do que é agora! No polo oposto, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, apoiados pelas FAR na guerra do Iémen, estarão mais interessados que o processo democrático avance, forma de preservar a existência das FAR, bem como a excelente relação que mantêm com o seu líder Hemetti. Quanto ao contágio regional, o Chade já declarou um reforço fronteiriço, prevendo a fuga de combatentes e refugiados para o seu território, bem como a possibilidade dos combates alastrarem Chade adentro. O Darfur norte, com fronteira com uma quina do sudeste da Líbia, mais as ligações das FAR ao marechal Haftar, poderão provocar de novo a faísca da guerra num território que a tem em suspenso, enquanto aguarda pelo desfecho dos acontecimentos na Ucrânia. A instabilidade crescente no Sudão do Sul, Etiópia e Eritreia, também deverão ser levadas em consideração, a partir da evolução deste conflito. Por último, suspeita-se, especula-se sobre as ligações das FAR ao Grupo Wagner, que estão também ali mesmo ao lado, na República Centro Africana..Tirada esta radiografia a partir do meu satélite, termino parafraseando de novo Alaaeldin Nugud, da Associação Profissional Sudanesa, que resume a complexidade do Sudão 2023 da seguinte forma, "Nem o Exército Nacional é um Exército Nacional, nem as Forças de Apoio Rápido são um Exército Nacional"!.Politólogo/Arabista www.maghreb-machrek.pt (em reparação)