No berço dos Voto Neves

Miguel da Rosa Lopes Luanda, 1970
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No Natal de 1970, a família Voto Neves reuniu todos os seus elementos em Luanda. Celebrava a data religiosa, mas também a recuperação de algumas terras já consideradas perdidas. Miguel Augusto Silva Neves da Rosa Lopes, bisneto do patriarca Aurélio Voto Neves, tinha apenas dois anos e as memórias são difusas. Mas sabe que esta foi a única vez em que toda a família esteve junta, já que a vida levou a que se dividissem entre África e Portugal. Ao longo dos anos, Miguel tem feito um esforço para reunir os pedaços espalhados da história da sua família: «O meu padrinho Henrique, homem ligado à música, gostava de me oferecer os seus discos. Um dia deu-me um que tinha a biografia do meu bisavô na contracapa», lembra Miguel da Rosa Lopes: «Fiquei curioso, mas não consegui encontrar muita coisa. Só agora, com a ajuda do meu primo Luís, que está em Angola, e com a internet é que tenho descoberto mais informação».

Aurélio de Oliveira Neves, conhecido por «Voto» Neves, nasceu no primeiro de Dezembro de 1880, em Luanda. Era filho de Francisco José das Neves, alentejano natural de Sousel, de ascendência escocesa e republicano convicto. «Mais um voto para a República!», terá dito o seu pai quando do seu nascimento, carimbando o filho, de forma permanente, com a alcunha de Voto Neves. Outra versão fala do pagamento de uma promessa. «O meu trisavô era relativamente idoso quando este seu filho nasceu, pelo que teria prometido que, se a criança fosse saudável, acenderia uma vela na igreja, ou um ex-voto», conta Miguel. Estórias que alimentam a história de um homem influente, dedicado à comunidade e à música. Já o pai de Voto Neves, o tal republicano e boticário de profissão, seria lembrado como uma pessoa de grande influência: «Fez fortuna, não só através da venda de um xarope que inventara e de que a população gostava muito, como também por ter investido, a partir de 1863, na compra de numerosas terras. No seu conjunto, terão chegado a ser maiores que Luanda. Conta-se que, em 1891 era proprietário da ilha do Mussulo, fazendo dele um dos homens mais ricos da região». O seu nome foi, em tempos, dado a uma rua da cidade onde viveu. «A sua mulher, D. Josefa de Aurélia de Oliveira, foi convidada, juntamente com a sua irmã, a abrir o baile no salão nobre do governo. Quem sabe se não foi lá que conheceu o meu trisavô?», adianta orgulhoso.

Voltemos a Voto Neves, o anfitrião do jantar de Natal de 1970 que reuniu toda a família. Foi funcionário dos caminhos-de-ferro de Luanda, até que o pai decidiu dividir as terras pelos filhos. Voto Neves decidiu então dedicar-se à agricultura e à criação de gado, sobretudo vacas. A venda de leite para Luanda, entre outros negócios, fez dele um comerciante de sucesso.

À descoberta das raízes

«Nos tempos livres tocava vários instrumentos - guitarra, sanfona, acordeão -, sendo o principal a guitarra. Foi poeta e cantava músicas portuguesas e africanas», continua o bisneto. Estudou a fundo o folclore angolano e chegou a dar aulas. Um artigo datado de Março de 2011 do Jornal de Angola lembra que Aurélio de Oliveira «Voto» Neves se distinguiu como compositor da rebita - um estilo que tem por base o acordeão e a harmónica - e que foi ainda um dos fundadores da Liga Nacional Africana, criada em 1929: «Não se sabia deste seu papel político, apenas que fora tesoureiro da Câmara Municipal de Luanda. Mas há cerca de três anos foi encontrada uma arca com documentos diversos sobre a criação da Liga Nacional Africana, e surgiu o seu nome.»

Voto Neves, de profundos olhos azuis, era conhecido por ser um bon vivant e fazia muito sucesso entre o sexo feminino. Foi pai de uma extensa prole, entre os quais Amílcar e Eurico Neves, poetas populares angolanos, e Óscar Neves, guitarrista e músico angolano. Este último foi homenageado em 2003 em Angola pela importância histórica e artística do conjunto da sua obra para a música tradicional angolana.

Miguel da Rosa Lopes, que vai coleccionando as histórias e os vestígios da família, afixando-os com orgulho no seu quadro de honra, acabou por nascer em Lisboa. A sua avó, Fábia de Oliveira Neves, casou com Francisco da Rosa Lopes, um comerciante de Castelo de Vide que esteve à frente da Loja do Povo em Luanda: «O meu pai veio estudar Engenharia para Portugal, foi trabalhar para a RTP e aqui fez a sua vida.» Mas os olhos verdes de Miguel, a veia artística e a vontade de conhecer as suas raízes, ligam-no para sempre aos Voto Neves. Foi esse o melhor presente recebido naquele longínquo Natal de 1970. Será ele a escrever a história, a unir todos os pedaços perdidos e a regressar às origens? «Não sei como será, mas gostava de lá voltar. Ainda é uma terra cheia de oportunidades».

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