Nas mãos da China
Nunca, como neste consulado de Kim Jong-un, Pyongyang testou tantos e tão variados mísseis. Só nestes oito meses de 2017, o regime lançou 21 mísseis, 19 deles de curto, médio e intermédio alcance e dois intercontinentais, nos 14 testes realizados, alguns em datas emblemáticas para Washington (como a 4 de julho), para Pequim (como em maio, no arranque da cimeira na capital chinesa sobre a Nova Rota da Seda), para Tóquio (como em fevereiro, quando o primeiro-ministro Shinzo Abe visitou a Casa Branca) e para Seul (vários após a eleição presidencial de maio). Há uma parcela importante de sinalização política na escolha do momento, o que pode indicar à radial de destinatários que as provocações são objetivamente repartidas por aqueles que tiveram lugar à mesa das negociações a seis (falta a Rússia), a última em 2007.
Sem grandes dados para interpretar o que passa pela cabeça de um facínora como Kim Jong-un, mas tendo em conta o histórico da nuclearização (com uma natureza mais defensiva) e os crescentes problemas internos (sociais e de coesão militar), diria que há três razões que podem explicar a espiral de testes e nenhuma delas passa por entrar numa guerra incontrolável (mesmo não sendo improvável). A primeira é contribuir para que Kim Jong-un consolide o seu estatuto presidencial sem dissensões ou golpes internos. A forma implacável como trata opositores e manipula vários setores das Forças Armadas ajuda a validar a tese de uma ascensão natural mas discutível. O regime não sobrevive sem a dinastia Kim; na sua narrativa sempre assentou o desenvolvimento nuclear na existência de um cerco regional montado por Washington; a demonstração de vitalidade militar no exterior ajuda a consolidar o herdeiro no trono e, por via disso, a evitar uma futura reunificação peninsular.
A segunda razão passa por garantir um reconhecimento da Coreia do Norte como um "grande" na região - a crescente autonomia decisional face à China aponta para aqui -, quer através da oficialização de uma nova ronda negocial (após algumas tentativas oficiosas falhadas nos últimos cinco anos), quer através da demonstração do desenvolvimento tecnológico militar em cada teste realizado com sucesso. Uma coisa é olharmos para o regime como um corpo militar impressionante mas obsoleto, outra é passarmos a ter respeito pelas capacidades destrutivas de uma elite que já nem Pequim controla. Para termos uma ideia, desde que a Coreia do Norte aderiu ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), em 1985, até à tomada de posse do atual líder, em 2011, o regime realizou 31 testes com mais ou menos sucesso. Desde então, Pyongyang subiu os números para 96. Mais: dos cinco testes nucleares feitos pela dinastia Kim, três deram-se no consulado atual; o primeiro teste de sucesso com um míssil intercontinental deu-se a 4 de julho de 2017; e o ensaio mais sofisticado a sobrevoar um território vizinho (Japão) foi também realizado em agosto deste ano, o primeiro com sucesso desde 1998. Ou seja, à consolidação do poder interno segue em paralelo uma subida no estatuto de qualidade militar regional, numa vizinhança onde a China está a construir um aparato militar impressionante - sobretudo naval -, o Japão acelera a normalização constitucional na defesa, a Rússia mostra-se na Europa, no Cáucaso e no Médio Oriente, a Coreia do Sul negoceia um sistema de defesa antimíssil com os EUA e outros atores asiáticos modernizam as suas Forças Armadas. Perder esta dinâmica obrigaria Pyongyang a abdicar do único elemento diferenciador e vantajoso em qualquer negociação a seis ou a dois (com a China, de quem depende em quase tudo).
A terceira razão diz respeito ao regime de sanções, suficientemente cirúrgicas para não fazer colapsar o país com uma crise social incontrolável, capaz de provocar um turbilhão interno e um êxodo na fronteira com a China. Aliás, esta tem sido moeda de troca para Pequim permanecer ao lado da condenação e aprovar sanções no Conselho de Segurança. Prevendo que o quadro de sanções não seja estruturalmente alterado e escapando ao colapso económico (tem até indicadores de algum crescimento), é provável que Pyongyang olhe para os limites da coerção económica ocidental, para a falta de confiança internacional em Donald Trump, e para a folga política conquistada à China como a trilogia perfeita para provocar medo regional e obrigar todos a sentarem-se à mesa nos termos e nas condições que Pyongyang quer. No entanto, subsistem sobre este possível quadro geral interpretativo, duas questões relevantes. Primeira, deve a "comunidade internacional" interessada sujeitar-se ao roteiro de Pyongyang? Claro que não. Mas voltar a ter vantagem sobre o regime implica duas coisas: concertação de posições (não há) e um tratado que não esteja morto como o TNP. Para evitar um ataque preventivo, que a China abomina e Trump lança no Twitter sem aval do Pentágono, é preciso um roteiro diplomático. Apesar de tudo, a nomeação de Victor Cha para embaixador americano em Seul traz boas perspetivas.
Segunda, que margem têm as duas principais potências para gerir a ameaça? O endurecimento de Washington cumpriria um papel necessário não fosse ter o efeito perverso de animar os ensaios em Pyongyang. A maior sensatez de Pequim acaba por colocá-la defronte do maior teste geopolítico de Xi Jinping: sem os canais habituais de diálogo com Pyongyang, mas vital à sua economia, próxima das preocupações de Seul e Tóquio, mas em tensão com Trump, precisa de tirar um coelho da cartola e salvar a situação sob pena de a perceção regional cair sobre si como um gigante sem influência e poder de barro. Chama-se a isto estar nas mãos da China.