"Não concordo nada que exista um cinema feminino!"

Está em exibição Ama-San, novo filme de Cláudia Varejão. História de um grupo de pescadoras japonesas que mergulha sem medo no fundo do mar para trazer marisco mais raro
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Chegamos a Ama-san e não temos de saber quem são as Ama, mulheres pescadoras japonesas que mergulham no alto mar em apneia para caçar marisco. Uma tradição que existe no Japão e na Coreia há mais de dois mil anos e que apenas inclui mulheres, de todas as idades. Tradição essa que passa de família em família.

Cláudia Varejão esteve um mês entre as Ama e conseguiu captar a intimidade destas mulheres na península de Isi-Shima. Um retrato que não lhes retira o mistério. O filme venceu a competição do DocLisboa e não abdica de um cuidado estético que já conhecíamos de outros filmes da cineasta. Nesta conversa revela como chegou tão perto destas sereias. Uma viagem também a um Japão sem perda na tradução.

Como é que se chega àquele momento de confiança com aquelas mulheres mergulhadoras, as Ama? Como é que a Cláudia as convenceu a fazer um filme sobre elas? Teve de as seduzir?

Elas deram-me imenso! Devo dizer que houve uma primeira viagem de repérage e na última vila que visitei, em Wagu, houve logo uma imensa empatia. Filmei três Amas e a do meio, aquela que tem os netos, foi muito gentil. Mal cheguei disso logo que podia ir para o mar e comer com elas lá em casa. Aí percebi que era com elas que queria fazer o filme . Disse-lhes o que queria e que se arranjasse dinheiro iria lá no ano seguinte filmar. Quando regressei ganhei a confiança delas, para os japoneses isso é importante. O que sinto que funcionou para o filme foi a curiosidade que tinha por elas, mas elas também tinham curiosidade sobre mim, sobre o cinema. Pensaram: porque raio vem uma pessoa do outro lado do mundo filmar aquilo. Elas não acham incrível aquilo que fazem... Achavam estranho as mulheres em Portugal não mergulharem. Depois, construiu-se um certo nível de intimidade.

Sentiu vontade de mergulhar com elas?

Senti. As imagens que vemos debaixo de água são captadas por um diretor de fotografia. Não pude mergulhar - o capitão do barco disse-me que não podia mergulhar, tinha de ter uma autorização da associação de pesca... Pensei que se eu fosse iria ser uma desgraça: não consigo ficar debaixo de água mais do que uns segundos. O que é incrível é que elas conseguem aguentar o fôlego durante minutos, depende da idade. É muito impressionante, dá medo! Todos os anos muitas delas morrem pois ficam presas lá em baixo nas algas. No filme parece tudo muito bonito mas...

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No seu filme não há sombra de tragédia...

Sim, adorava que tivesse havido qualquer coisa... Enfim, não deixa de ser um documentário por muito que tente trabalhar plasticamente e tenha pedido para repetir certas coisas.

Dá ideia que o filme é inundado por uma certa beleza.

As imagens prestam-se a isso. Lá em baixo do mar é muito bonito e não percebi que era perigoso. Pensei apenas que seria difícil fisicamente.

Ama-san tem feito um interessantíssimo circuito nos festivais internacionais. Que tipo de reações as pessoas têm, o que lhe perguntam mais nas sessões de conversa com o público?

São reações de encantamento. Sabe porquê? Porque também eu estava encantada com aquilo. Depois, em todos os festivais, surge sempre alguém que pergunta: porque é que não há homens neste filme? Pois é, têm razão... Os homens não estão lá... aconteceu assim. O que penso é que crescemos a ver filmes onde o protagonismo é com os homens e a mulher, por vezes, só lá está para sustentar o herói. Quando é ao contrário todos nós reparamos.

Por outro lado, sente-se a presença do capitão, é ele quem as leva para o mar.

Eu também sinto! Lá está, é o olhar de cada um...

Em 2013 vimos A Mãe e o Mar, de Gonçalo Tocha, documentário que também filmava uma portuguesa que pescava e a sua relação com o mar. Foi um filme que lhe deu pistas?

Não vi, mas tenho curiosidade. Não vi na altura e, depois, quando tive interesse pelas Amas, pensei que era melhor não ver. Poderia ser influenciada de alguma forma. Quan-do estou a preparar um filme procuro não ver muita coisa para depois nada se agarrar. Mas agora já posso ver! Era muito engraçado essa senhora que o filme do Tocha retrata poder também ver o meu filme.

Sinto que cada vez que chega um filme realizado por uma mulher acontece aquele discurso cheio de clichés sobre a sensibilidade feminina atrás da câmara. Não acha que é um enorme disparate tudo isso, como se os homens cineastas não pudessem ser sensíveis?!

É um cliché, uma estupidez! A intuição atrás da câmara é algo transversal. Não concordo nada que exista um cinema feminino! O que existe são mulheres que fazem cinema e que se podem aproximar de certas temáticas que lhe são mais próximas.

As pessoas conheciam mais a Cláudia pelas suas curtas com narrativa ficcional. Poderemos ainda esperar a ficção no seu cinema no futuro?

Estou a tentar fazer uma espécie de fusão de dois mundos, o documental e o ficcional. A forma como penso os filmes não muda muito, apenas o tamanho das equipas.

Está a falar de filmar histórias de ficção com gente real?

É isso. Interessa-me muito a ficção, mas também interessam-me muito as pessoas e os contextos reais. E gostava de não perder aquele cuidado estético que tento sempre ter. Aqui neste filme também há coisas que parecem uma construção de um filme de ficção.

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