Na Sala de Estar de Carlos Leitão, há fado, cante alentejano e muito mais

Queria ser jornalista e fazer relatos de futebol mas mudou de vida e começou a compôr e a cantar. Fez-se fadista. Não se preocupa com rótulos e tem um público fiel... na Áustria. Lança esta semana o segundo disco, Sala de Estar
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Carlos Leitão nunca quis ser bombeiro nem astronauta. Desde pequeno, sempre quis ser jornalista. Sonhava fazer relatos de jogos de futebol como aqueles que ouvia no rádio aos domingos à tarde. Carlos chegou a ser jornalista mas não conseguiu fazer nenhum relato. Mas, hoje, com 37 anos, a sua voz ouve-se na rádio. A cantar. Na próxima sexta-feira lança Sala de Estar, um disco de fado (e não só) de que é intérprete, produtor, autor e compositor da maioria dos temas: "Foi a primeira vez na minha vida em que comecei um projeto, fosse ele qual fosse, a partir de uma ideia muito rudimentar, e, depois de estar pronto, ouvi-o e pensei: é isto mesmo, nem mais nem menos."

Como é que um jornalista se transforma em fadista? Não se transforma, ele já era fadista, foi só uma questão de inverter as prioridades. Morava em Corroios, na Margem Sul, numa família de alentejana, e cresceu a ouvir a requinta tocada pelo avô, o fado interpretado pelo pai e o cante sempre que os tios se juntavam numa almoçarada. Aos 10 anos atuou pela primeira vez, numa noite de fados no Café Portugal, em Corroios. "Sabia uns três ou quatro fados e tremia por todo o lado", recorda. Aos 11, ganhou a Noite de Fado no Coliseu dos Recreios. Encheu-se de sonhos.

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"Mas nunca levei o fado muito a sério porque eu desde miúdo queria ser jornalista. Gostava muito de ler e de escrever, era cheio de curiosidades, tinha uma fixação com as formigas. O fado era um hobby", explica. Na adolescência, aprendeu a tocar viola e como o irmão, quatro anos mais velho, tocava guitarra portuguesa, começaram a apresentar-se os dois nas noites de fado amadoras.

"Em miúdo era gozado por gostar de fado e cantar fado. Era considerado careta. Quem é que com 12 anos ouvia fado?" Para ele, o fado era algo tão sério quanto a escrita, por isso é normal que tenha começado a escrever poemas que logo se transformavam em letras de canções. "Dos 17 para os 18 anos fiz um disco com letras minhas e da minha mãe. Ter um disco com letras originais, todas, com aquela idade não era uma coisa habitual", recorda. Mas, nessa altura, entrou para a faculdade e, apesar de continuar a cantar em alguns sítios, a música acabou por ficar para segundo plano. Estudou comunicação social e foi durante alguns anos jornalista na área desportiva, na rádio, em jornais, em publicações especializadas, por exemplo, sobre automóveis.

Em 2004, zangou-se com o jornalismo e com Lisboa. Decidiu ir ter com o irmão, que estava em Arraiolos. Foi como voltar a casa. "Descobri a qualidade de vida, o verdadeiro sentido da partilha, conviver com amigos. No Alentejo parece que o tempo leva mais tempo a passar. Comecei a escrever ainda mais, com mais densidade e com mais qualidade, e através das tertúlias de amigos comecei a ir tocar aqui e ali, e aquelas coisas acabaram por me preencher. Então pensei: eu toco, eu escrevo, eu canto, eu componho - porque não arriscar?"

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Começou a cantar no Clube de Fado, em Lisboa, a cantar também no estrangeiro. Na Áustria, é um enorme sucesso: "Há cinco anos que vou à Áustria durante o mês de janeiro fazer uma tournée de 15 dias. É tremendo, é uma experiência fantástica. Os holandeses e os japoneses também deliram com o fado. Eles não querem "casas portuguesas", querem o fado menor, o fado bravo, aquele fado que muitos de nós renegam, o fado mais genuíno. Mas eu tenho uma relação especial com o público austríaco. Este ano apresentei primeiro o disco lá e foi um sucesso brutal. Levo sempre uma voz feminina, este ano levei a Filipa Cardoso."

Incentivado pelo guitarrista Custódio Castelo, em 2013, gravou aquele que é, oficialmente, o seu primeiro disco, Do Quarto. Era "uma coisa muito densa e melancólica", muito diferente deste em que sai do isolamento do quarto e passa para a Sala de Estar, um local de convívio, onde se recebe os amigos. "Cantar aquilo que escrevo é a maneira que tenho de mostrar aquilo que sou", diz. "Eu sou um romântico, escrevo muito sobre amor. O ato de escrever é de solidão e para mim é muita vezes catártico. Eu não consigo escrever de outra maneira e francamente também não quero, não me faz sentido que seja de outra maneira. Por isso escrevo essencialmente sobre a vida, a minha vida."

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Para esta Sala de Estar, além do irmão, convidou o guitarrista Carlos Menezes, um velho companheiro. Depois, desafiou músicos muito diferentes, como Jorge Fernando ( compôs A Distância), Rui Veloso (Que Seja Adeus), o pianista Júlio Resende (Verbo Amar), entre outros. A cantora Cuca Roseta participa em Fado de um Tempo Incerto, e a atriz Lia Gama recita uma parte do poema em Terra Certa (o tema é uma homenagem ao pai de Carlos Leitão de quem Lia Gama foi amiga). A única letra que não é de sua autoria é de Tiago Torres da Silva que escreveu O Tempo que Me é Dado. Pelo meio, há um tema original de cante alentejano interpretado por ele, à capella, com alguns amigos de grupos corais. "Era algo que eu queria fazer há já algum tempo", confessa. "Uma moda nova de cante."

O resultado é um disco que é de fado mas que nem sempre soa a fado. Carlos Leitão não se preocupa com as definições: "O fado é sempre fado, ponham-lhe as roupas que quiserem por em cima. Aquilo que eu faço em disco é dizer: isto sou eu. Está aqui aquilo que eu gosto de fazer, as minhas influências. No tema do Rui Veloso está um pequeno solo de guitarra elétrica. Ah, isto não é fado, dizem-me. Não quero saber, deixa-me satisfeito. Acho que nesta maionese toda que é a música temos que ser quem somos. Se a música não refletir aquilo que tu és na tua vida, estás fora, és de plástico. Ali eu estou inteiro, sendo fado ou não. Podem gostar ou não gostar, mas não duvidem da minha integridade enquanto artista. Esta é uma postura que aprendi no Alentejo: deixa-os falar."

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