Na pista dos baleeiros açorianos de Moby Dick

<div>No 160.º aniversário da obra-prima de Herman Melville, a NS" atravessa o Atlântico para seguir a pista dos baleeiros que o escritor imortalizou e descobre uma odisseia sobre a chegada dos portugueses à América.</div> <div> </div>
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Herman Melville agarrou na pena e escreveu «Chamai-me Ismael.» Assim que o olhar do leitor pousa nessa frase inicial, não abandona mais a história de Moby Dick. Acompanha Ismael quando este se alista no baleeiro Pequod e segue-o na saga do capitão Ahab, um louco que atravessa oceanos para vingar a perda da sua perna, arrancada por um mítico cachalote branco. A determinado momento do livro descobre-se na tripulação do navio Daniel, um marinheiro açoriano, da minúscula ilha do Corvo. Para a maioria dos leitores, o motivo da presença de um português na obra permaneceu um mistério durante décadas. A busca pela resolução deste mistério começa a bordo de um voo da Sata Air Açores. Há vários sinais da presença americana: os bonés de equipas de baseball e os blusões de universidades anunciam a presença dos portugueses na Costa Leste dos Estados Unidos. Isto muito antes de surgirem as primeiras luzes de Massachusetts, pela janela do avião.Foi numa cidade deste estado americano, Fairhaven, que Herman Melville embarcou numa baleeira no dia 3 de Janeiro de 1841. O escritor viveu 18 meses no Acushnet, o navio do capitão Valentine Pease Jr. e foi essa experiência que alimentou as minuciosas descrições publicadas em 1851. Inspirou-se também no naufrágio do Essex, um navio de Nantucket abalroado por um cachalote, e conheceu os relatos nebulosos de uma baleia albina caçada nas águas da ilha chilena de Mocha. Dezenas de páginas do romance nasceram no terreno das experiências pessoais do seu autor. Se menciona os baleeiros açorianos, terá Melville conhecido algum?Quase cinco horas depois de abandonar São Miguel, o avião da Sata aterra no Aeroporto Logan, em Boston. O oceano Atlântico, o primeiro obstáculo para descobrir a verdade, está ultrapassado. Agora é preciso continuar a busca na cidade de New Bedford, para voltar às páginas de Moby Dick: Ismael alistou-se nesta cidade. É preciso seguir-lhe a pista.1.ª pistaA cidade baleeiraA auto-estrada sai de Boston e quarenta minutos depois está a atravessar a Braga Bridge, «a maior ponte dos Estados Unidos», segundo a anedota que assegura que entramos nos Estados Unidos e saímos nos Açores. Tem nome de soldado português. E termina em Fall River, uma cidade com pouco mais de noventa mil habitantes, metade dos quais portugueses ou luso-descendentes, a maioria dos quais micaelenses. Reconhece-se imediatamente uma réplica das Portas da Cidade, o monumento de Ponta Delgada, e subindo a Columbia Street encontra-se o Mercado Chaves, o Café Europa, o Restaurante Sagres, o Cinderela e, a meio da rua, a Igreja de Santo Cristo.Os sinais da presença portuguesa multiplicam-se ao longo da Route 195 e assinalam o caminho até New Bedford. Na baixa da cidade, casas de tijolos vermelhos e construções de madeira enquadram as estreitas ruas de calçada, que descem até à frente marítima, preenchida com centenas de barcos coloridos que denunciam a cidade como o maior porto de pesca do país. No centro da cidade encontra-se o New Bedford Whaling Museum. Se existe um local com pistas sobre os baleeiros açorianos, é este.Três enormes ossadas de baleias, uma delas de um cachalote, estão suspensas no tecto. O museu é uma sucessão de salas que contam a história da baleação através de uma vertigem de quadros, esculturas, artefactos e filmes que conduzem o visitante desde os mais antigos registos da baleação, umas pinturas rupestres na Coreia com cerca de oito mil anos de idade, aos bascos do século XIII e à Costa Oeste dos Estados Unidos, onde, em 1750, se resolveu o problema de um mar cada vez mais vazio. E se começou a trilhar o caminho para os Açores. Depois de milénios sem mudanças relevantes, 12 meses foram suficientes para transformar a actividade. As baleeiras começaram a ser equipadas com tryworks, um equipamento que permitia derreter a carne da baleia e transformá-la em óleo ainda a bordo, permitindo que as viagens se alongassem, muitas vezes ultrapassando os quatro anos. Na mesma altura, foi inventada outra técnica que permitia separar um material encontrado nas enormes cabeças dos cachalotes chamado espermacete. A substância branca - que se acreditava ser o esperma do animal - era transformada em velas e cosméticos e tornou-se num dos produtos mais preciosos da baleia, apenas ultrapassado pelo raro âmbar cinzento, que surgia no seu intestino. A espécie, até então negligenciada pela indústria, foi redescoberta. O valor do cachalote subiu em todos os mercados. O caminho dos baleeiros até aos Açores que aos homens competia estava terminado. A natureza havia de completar a tarefa.Os navios apontavam para todos os oceanos e mares, mas os caprichosos ventos do Atlântico Norte sopram predominantemente para leste no Norte e para oeste no Sul, colocando os Açores no centro da rota de qualquer barco que queira ir para o Atlântico Sul, o Pacífico ou o Índico. Por motivos que na altura a ciência desconhecia, os cachalotes existem em abundância junto às ilhas atlânticas. Assim que os yankees o descobriram, o caminho para os Açores chegava ao fim. Os baleeiros já navegavam nas suas águas. Segundo o picoense José Serpa, no texto «A indústria piscatória nas ilhas Fayal e Pico», «em 1767 andavam nestes mares 70 navios e agora este ano [1768] já cruzam em frente das ilhas, 200 embarcações pequenas d"um mastro só e tiraram muito azeite e algum âmbar.» Na sociedade fechada do arquipélago, os açorianos viam nos cascos dos navios o reflexo de um mundo novo, perdido em abundância e aventura, e embarcavam. Assim que tocavam os porões gordurosos das baleeiras, mudavam de nome: os Rosa passavam a Roger, os Freitas a Frates, os Machado a Marshall.Pequod, o navio baleeiro de Moby Dick, esteve ao largo dos Açores, mas não fez escala. Melville esclarece que «não poucos destes caçadores de baleias são originários dos Açores, onde as naus de Nantucket que se dirigem a mares distantes atracam, frequentemente para aumentar a tripulação com os corajosos camponeses destas costas rochosas. Não se sabe bem porquê, mas a verdade é que os ilhéus são os melhores caçadores de baleias». Estes homens, a maioria deles rapazes de 13 e 14 anos, só falavam português, mas começavam imediatamente a olhar o mar em busca do repuxo das baleias. Uma das primeiras frases que aprendiam em inglês era She blows, «ela sopra».2.ª pistaOs pioneirosNuma grande ala do museu, com um pé-direito de dois andares e uma grande baleeira restaurada no centro do soalho de madeira escuro, impecavelmente encerado, uma placa anuncia Azorean Whalemen Gallery, a ala açoriana do museu. Inaugurada em Setembro do ano passado, esta é a única exposição permanente sobre a contribuição portuguesa para o património marítimo americano.Aqui descobre-se que o primeiro português numa baleeira norte-americana terá sido Joseph Swazey, no ano de 1765. O primeiro capitão terá sido o faialense Frederick Joseph, líder do Bark Perry a partir dos 23 anos. Algumas décadas depois, um florentino, Nicholas R. Vieira, chegou a capitão e ficou conhecido por ser «um homem invulgarmente bonito, com olhos azuis faiscantes e um ar gentil que o transformava um preferido entre as senhoras.»Um dos mais antigos registos pertence a Joseph Vera, das Lajes do Pico, casado com uma irlandesa. Em exposição no museu estão dois grandes retratos a óleo do casal, que foi dono de um armazém de abastecimento de baleeiros. A primeira entrada do seu registo de encomendas, feita por Manoel d"Souza Betencourtt a 28 de Julho de 1954, requisita, por exemplo, «1 colete de setin», «Sirollas e camiza algodão», «1 lenco d"algibeira», «1 Cacimbo e 1 Garaffa bia de Funeral» ou «Sigarros». A encomenda permanece como o mais antigo registo comercial escrito em português na cidade.O professor universitário norte-americano Donald Warrin explica no livro Assim termina este dia: os portugueses na baleação americana, 1765-1927 que, «se no século XVIII a presença portuguesa nas baleeiras americanas rondava quarenta por cento, a partir de 1920 essa presença aumentou para mais de sessenta por cento e a maioria dos barcos passaram a ser capitaneados por portugueses».Ao longo dos anos, os açorianos tornam-se conhecidos por manter coesa e extensa a rede familiar. Pais, filhos, tios, sobrinhos e primos cruzavam-se a bordo da mesma baleeira. Duas famílias destacaram-se: os Edwards e os Mandlys. Ao longo de quarenta anos, Edward, o patriarca da família com este nome, coleccionou histórias que adorava partilhar, como a do dia em que foi dado como morto.Edward estava na ilha de Saint Kitts, nas Índias Ocidentais, quando um ataque cataléptico, seguido de febres reumáticas, o deixou imobilizado durante trinta horas. Nem um tremor, nem um suspiro. Todos, mesmo o seu médico, o deram como morto. Apenas a mulher lutou contra o regulamento que proibia a manutenção de um corpo a bordo durante a noite e conseguiu um dia extra antes de o corpo ser enterrado. No fim do prazo, desesperada, chamou um padre para dar a extrema-unção. Nesse momento, o religioso detectou minúsculos pingos de suor na testa do capitão. Joseph garantia que, embora não movesse um músculo, tinha estado sempre consciente.A saga da família Mandly, que comandou mais viagens baleeiras do que qualquer outro clã, começou ironicamente com o falhanço do patriarca Henry nas costas da Califórnia. Um sobrinho deste originário da ilha Graciosa, Henry Mandly Jr., chegou a retirar um arpão do pé do seu piloto - sem ter qualquer experiência como médico - e o homem voltou a andar normalmente. Henry tinha também uma porca de estimação, Betty, que levava consigo nas viagens. O animal tinha aprendido vários truques e exibia-se às pessoas que aguardavam o navio no porto. Na sua última viagem, Henry desviou-se da rota para salvar a tripulação de um cargueiro. Os 12 homens ofereceram-lhe um relógio de ouro com a seguinte inscrição: «Oferecido ao Capitão H. Mandly Jr. pelo capitão e sobreviventes do S.S. Roy H. Beattie, ardido no mar no dia 18 de Abril de 1921.»3.ª pistaO arquivoO museu situa-se no New Bedford Whaling National Historical Park, que integra 13 quarteirões da cidade e celebra a actividade que a dominou durante dois séculos e lhe ofereceu o epítome de cidade baleeira. As ruas estão praticamente iguais à época em que Melville escreveu a saga do capitão Ahab. O caminho de calçada em frente ao museu conduz à Seamen"s Bethle (em português, Capela dos Homens do Mar), onde Ismael ouviu o empolgado sermão do padre Mapple antes de embarcar no Pequod. O púlpito com a forma da proa de um barco, descrito no livro, não existia. O que agora ali se vê foi instalado nos anos de 1960 para evitar a desilusão dos visitantes.Muito perto, fica a igreja St. John the Baptist, São João Baptista, o primeiro edifício religioso construído pelos portugueses na cidade. O templo é contemporâneo do «Litle Fayal», um bairro assim conhecido devido à concentração de faialenses, e hoje praticamente desaparecido. Um jornal local descreve New Bedford em 1907 e diz que «a velha cidade baleeira de New Bedford é agora moderna a um certo ponto devido aos eléctricos, estradas bem pavimentadas e 80 mil pessoas, 10 mil das quais portugueses». New Bedford era uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos e uma das maiores cidades baleeiras do mundo. Durante esses anos o óleo aqui produzido iluminava milhares de lares em todo o mundo e a cidade adoptou o mote latino Lucem Diffundo, «eu espalho a luz».Entretanto, descobre-se o edifício do arquivo do museu. A receber os visitantes está Laura Pereira. Laura é americana, mas está casada com um português. Explica que praticamente não existem relatos em primeira mão destes homens, mas indica um jornal da cidade onde «A Vida dos Marinheiros», um longo - e raro - poema da autoria de Manuel T. Lopes, foi publicado em 1916. Os versos narram a viagem de três naturais das Flores que sonharam com o Novo Mundo para fugir ao serviço militar. «Tinha 16 anos de idade/ Um moço bem educado/ Fugi a minha mãe/ Para não ir para soldado». Manuel Costa, que abandonou o Faial aos 13 anos e aos 31 era capitão do barco Eleanor B. Conwell, mostrou o mesmo espírito em versos: «Lá estão os pobres pais/ Os pobres pais a esperar/ Para que elles a váo ver/ Só para os consolar.»Na obra biográfica Nine Years a Sailor (Nove anos marinheiro), Charles Nordoff explica que estes açorianos «são gente pacífica e inofensiva, sóbrios e trabalhadores, sujeitos a muitas carências e faltas, mas, acredito, invariavelmente, excelentes baleeiros. São tidos com grande apreço pelos armadores e oficiais, mas são muitas vezes desprezados pelos oficiais de bordo, os do castelo da proa, que notam diferentes hábitos de depreciar com mexericos, denunciando as faltas dos outros. Encontrei neles o contrário, em uma ou duas excepções, estes eram os únicos indivíduos da tripulação com quem pude associar-me com algum prazer».Ainda antes de enfrentar o maior animal do mundo, a tripulação já arriscava a vida. Nos navios a comida estava muitas vezes contaminada, não havia condições de higiene, dormia-se em espaços exíguos sem circulação de ar, e obedecia-se à autoridade total de um capitão com um código rígido, que não permitia, por exemplo, cantar ou assobiar.Este inferno flutuante provocava a deserção de muitos marinheiros nas ilhas, mas os açorianos que refaziam a tripulação mostravam outra resistência. «Os oficiais tendem a favorecê-los devido à docilidade com que enfrentam comportamentos abusivos e más condições de alimentação, além de estarem sempre prontos a embarcar em longas viagens ao abrigo de contratos menos honestos, cujos termos podem ser alvo de reinterpretação de um momento para o outro. Alguns deles são, certamente, verdadeiras maravilhas de poder de encaixe e poder de parcimónia. As suas despesas por conta no cofre de bordo, referentes aos gastos menores durante a viagem, somam quase sempre quantias irrisórias, muito abaixo do consumo médio dos outros membros da equipagem. (...) Apesar de criados num país produtor de vinho, não manifestam geralmente grandes apetências para a intemperança.»Charles Nordoff, que esteve embarcado, destaca ainda outra característica. «Eles têm além disso um objectivo na vida, que nunca perdem de vista no trabalho duro das longas viagens, a esperança deles é que algum dia possam casar-se na sua ilha de nascimento, entre os amigos e os que lhe são queridos, e com as economias de anos de trabalho duro, passarem os seus últimos dias numa reforma serena.»4.ª pistaOs herdeirosForam estes homens, que nunca se desfizeram do sonho inicial de regressar às ilhas, que lideraram as primeiras tentativas da caça à baleia nos Açores. Chegaram, lançaram-se ao mar em pequenas embarcações de madeira e caçaram baleias à mão. A actividade dominou um século de cultura insular, que terminou há 25 anos, quando se caçou o último cachalote no arquipélago.Em 1957, a erupção do vulcão dos Capelinhos marcou o início de um surto emigratório que resultou no nascimento de uma nova ilha açoriana nas costas da Nova Inglaterra. Um século depois New Bedford voltava a acolher baleeiros açorianos. Durante décadas, estes homens dominaram a maquinaria das suas fábricas e manejaram as alfaias das suas quintas. Hoje, escondidos no interior das casas desta cidade, contam aos netos as histórias do dia em que o avô caçou três cachalotes ou do momento em que uma baleia virou o bote. São os verdadeiros herdeiros de Daniel, o baleeiro açoriano criado por Melville. São mais passo em frente para desvendar o mistério dos baleeiros açorianos de Moby Dick.Mariano Barreiro, 83 anos, conta que o destino de um baleeiro nas ilhas «era uma vida laparosa». Mas, porque tem as memórias vivas, elas traduzem-se em palavras. O micaelense trabalhou na lavoura e na pesca, «mas quando havia baleia também ia». Não tinha outra solução. Com nove filhos, «eram 11 pratos de cada vez na mesa.» Nas vigias - pequenas casas feitas de pedra com uma visão privilegiada sobre o mar -, havia homens com binóculos à procura de baleias. Nos dias em que não se avistavam cachalotes, os homens pescavam, trabalhavam as terras, ajudavam na descarga do vapor ou ocupava-se com a Banda Filarmónica e o jogo do dominó na sociedade. Apenas os mais afamados baleeiros conseguiam sobreviver de arriar à baleia.Mariano, que hoje vive em Massachusetts, fala com um terço na mão. Na sua freguesia de Santo António, nas Capelas, parte norte da ilha de São Miguel, a igreja ficava ao lado da Casa dos Baleeiros. Depois de Inês Gertrudes - a sua «mulher perfeita e boa de coração» - lhe desejar «Nosso Senhor vá contigo», ele ainda aproveitava para se benzer em frente à igreja. Por mais bonançoso que o mar estivesse, nos Açores rapidamente ele se enfurece e na memória de todos permanecia este ou aquele desastre, uma ou outra morte.O micaelense lembra como ia no bote, rebocado pela lancha, a pensar: «Como será que isto vai ser?» O bote parava a dois ou três metros do cachalote. Forçado pelo medo, reinava o silêncio. Em cada embarcação, seguiam sete homens. Ao trancador competia a estocada final e não lhe eram permitidas hesitações, ao mestre cabiam as ordens. Mariano era remador. «Íamos sentados, não víamos nada, só depois de a baleia estar trancada. Um homem arrepia-se ao ver um bicho tão grande, maior do que a canoa.»A primeira vez que arriou à baleia, o seu bote teve sorte e apanhou três baleias. Mas, por vezes, as coisas corriam mal. Depois de arpoada, a baleia podia «cantar» - como os homens chamam aos demorados mergulhos das baleias - ou arrastá-los mar fora a uma velocidade de vinte ou trinta milhas por hora. Os olhos seguiam sempre pousados sobre a linha de manilha americana. Amarrada ao arpão e enrolada dentro de duas selhas, seguiam trezentas braças de linha, mas se a baleia fosse grande «levava a linha de três botes.» A arça é o fim da linha e era com pena que o último tripulante a cortava. Era uma baleia que se perdia mas uma tragédia que se evitava.Mariano recorda o dia em que um homem ficou preso na linha, arrastado para o fundo do mar e depois recuperado já sem vida. Na maior parte das vezes, a baleia vinha à tona da água antes que a linha acabasse, o bote aproximava-se e o trancador, com uma lança, fazia o animal sangrar. Quando «o repuxo era vermelho, da cor do sangue», a baleia estava certa. Não foi, no entanto, em São Miguel que a baleação teve maior impacte económico. Carlos e José Eugénio, de 74 e 77 anos, respectivamente, são dois irmãos da freguesia das Angústias, no Faial. Nunca gostaram da escola e faltavam às aulas para jogar futebol. Lembram-se de estar nos treinos do Angústias Atlético Clube, «atirar a bomba e era tudo a correr para o cais».José começa por dizer que nunca teve receio, mas acaba por confessar que «fazia medo, atiravam o foguete e nenhum homem ficava com a cara direita.» Carlos tinha 14 anos quando caçou pela primeira vez. Houve quem comentasse que era «pecado deixar arriar à baleia uma criança daquela idade.»O faialense diz que «havia rivalidade com os botes do Pico e, mais tarde, com os de São Jorge». Na tasca do Manuel Jorge, na Horta, o número de baleias caçadas por cada bote era anotado num quadro preso na parede. Entre um trago de aguardente da terra e um copo de angélica, desfiavam-se aventuras e faziam-se apostas. «Era quase como uma competição», explica o irmão.Nas ilhas do triângulo, os homens tinham uns versos que Noélia, a mulher de José, recorda. «Quando o foguete estrondeia, corro à praia num instante/ é um sinal de baleia, que manda correr à vante/ para onde eu vou é que eu não sei, quem nos manda é a sorte/ quem sabe se em lugar do pão encontrarei a morte.»As preces das «mulheres baleeiras» dirigiam-se a Nossa Senhora de Fátima ou ao Senhor Santo Cristo. No primeiro domingo de Agosto, os faialenses organizavam a procissão de Nossa Senhora da Guia, em que a imagem passava de bote em bote. Todos os baleeiros tiravam uma soldada para ajudar a sua realização.Depois de morto, o animal era rebocado até terra. No cais, a baleia era içada no guindaste para ser desmanchada e os pesados bocados de toucinho eram derretidos em enormes caldeirões. A casa dos irmãos ficava mesmo em frente à fábrica da baleia. Eles lembram-se do «cheiro muito forte» dos torresmos a derreter. Todos ganhavam com a caça e da baleia aproveitava-se quase tudo. Algumas pessoas atribuíam capacidades curativas ao fumo e Carlos e José lembram-se de «pessoas com reumatismo que iam à fábrica esfregar na pele o azeite da cabeça da baleia.»O Pico foi, provavelmente, a ilha onde a actividade teve maior expressão. A família de Aldemiro Machado, 75 anos, tinha uma casa perto da companhia dos botes, em São Roque do Pico. Um dia de Agosto, «já havia milho seco», faltou um homem para completar a tripulação. O oficial do bote, João de Brum Domingues, encarou o pai de Aldemiro: «Senhor Cladomiro, o seu pequeno pode ir?» «É um rapaz novo, não vai», respondeu o homem. O oficial acabou por responsabilizar-se por Aldemiro e lá foi o rapaz, poucos meses depois de ter completado 13 anos. O oficial, «um senhor alto e delgadinho», sentou-o ao pé de si. Quando o avisou para baixar a cabeça por causa de uma manobra, Aldemiro esquivou-se para evitar a pancada da retranca e, quando voltou a erguer-se, viu «um esguicho, uma coisa preta a deitar fumo» e exclamou: «Oh, oh, a baleia!» Aldemiro e o oficial ficaram amigos. João de Brum Domingues chamava-o «o meu menino.» Quando o picaroto completou 17 anos, o oficial sofreu um ataque no bote e morreu. Poucos meses depois, Aldemiro voltou ao mar. Estavam já longe da costa, quando alguém distinguiu uma baleia dirigindo-se a grande velocidade para o bote e gritou: «Atirem-se ao mar.»Aldemiro cumpriu de imediato a ordem e lançou-se no ar. Enquanto descia em direcção à superfície do oceano, distinguiu uma massa preta. Bateu com a cabeça no cachalote e, quando este mergulhou, foi arrastado para as profundezas do oceano. O seu mundo desapareceu. Aos poucos, abriu os olhos e distinguiu uns contornos esbranquiçados e brilhantes, quase celestiais. Ainda atordoado perguntou: «Onde estou?» Nesse momento, sem distinguir qualquer rosto, ouviu uma voz. «Está tudo bem, sou médico, trouxeram-no para o Hospital da Horta, no Faial.»5.ª pistaOs companheirosTodos os anos, em Setembro, a ponte entre os Estados Unidos e os Açores é recuperada pelos açorianos para participar na Regata Internacional de Botes Baleeiros, que em 2011 terá a sua sexta edição. A filha de Aldemiro Machado pertence à equipa feminina de New Bedford.A regata faz parte de uma nova consciência que despertou há 25 anos, enquanto se guardavam os botes em casa e penduravam os arpões nas paredes. A baleia, transformada num símbolo sagrado da ecologia, permaneceu um activo do capitalismo. Recuperou-se a arte do scrimshaw, importou-se o negócio do whale watching, construíram-se museus e organizaram-se arquivos para combater a erosão da memória. Assim que termina a pesquisa no arquivo do museu, Laura Pereira, a bibliotecária casada com um português, diz que tem algo para mostrar e desaparece com passos curtos e rápidos atrás de um monte de livros.Reaparece com uma moldura castanha na mão. É uma lista com a tripulação do Acushnet. «São os companheiros de Melville», explica. Esta pode ser a prova definitiva de que o escritor conheceu um baleeiro açoriano. Laura começa a virar a moldura. Chegou o momento de conhecer a verdade. É agora. Com algum esforço, a mancha de letras ganha alguma definição. Já se distingue a caligrafia do capitão, o barco tinha uma tripulação de 27 homens. Mais alguns segundos e a espiral de letras e linhas organiza-se para destacar quatro nomes: George M. Gurham, Joseph Luís, John Adams, Martin Brown. Jorge, José, João e Martim. Todos açorianos, os quatro da ilha do Faial.Mistério resolvido.

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