Em Lima, a cidade onde chove uma vez a cada seis séculos, o domingo de 1 de janeiro de 2023 da família Chastalo vai ser igual a todos os outros dos últimos dois anos, desde que Jorge, o pai, foi deslocado de Curitiba, no Brasil, para a capital do Peru, em missão oficial. "Vamos passear no parque com as nossas filhas, a Lorena, de 12 anos, e a Lavínia, de 10, jogar à bola, fazer um piquenique, dar um passeio à beira mar, mas depois vamos colar os olhos na TV toda a tarde", conta Bruna, a mãe..A razão para "colar os olhos na TV toda a tarde" é a posse de Lula da Silva, o novo presidente do Brasil mas também o mais famoso ex-detido da Superintendência de Curitiba, de 7 de abril de 2018 a 8 de novembro de 2019, sob a chefia de Jorge Chastalo, agente da polícia federal a cumprir, desde 2021, o papel de adido de segurança na embaixada brasileira no Peru..Como Jorge, por estar em funções no estrangeiro, não tem permissão para falar à imprensa, é Bruna quem conta ao DN como foi a convivência com o protagonista da mais espetacular reviravolta política da história do país - de uma cela, nos dias finais de 2019, Lula transfere-se para o Palácio do Planalto, no primeiro dia de 2023.."Pensámos que o processo se estenderia por apenas alguns dias mas afinal foram 580 de convivência, o que interferiu muito nas nossas vidas, na rotina da nossa casa, as nossas conversas passaram a ser também sobre essa experiência, até pela minha curiosidade de saber qual a personalidade do Lula e tudo o que o envolvia", diz Bruna. "Embora morássemos muito próximos à superintendência, o Jorge ficava lá 24 horas por dia no início, eu mandava-lhe a roupa, cuidados de higiene e até comida, foi um evento de uma grande imensidão no Brasil".."Na cela, Lula sempre se mostrou lúcido, sensato e sereno, falava constantemente que estava preso por "facto indeterminado", que ninguém, como ele, deu tantos poderes aos órgãos de controle de corrupção, que provaria a sua inocência e que voltaria a concorrer e a ganhar a presidência porque essa seria a única solução para tirar o governo que agora cessa funções", continua..A família Chastalo não era eleitora de Lula - "nós tínhamos uma ideia diferente dele, por causa do que escutávamos na comunicação social", justifica Bruna. Mas mudou de opinião. Ao ponto de, no intervalo entre as duas voltas das eleições, Jorge chegar mesmo a manifestar-se publicamente - e talvez seja esse o motivo, e não o de exercer funções fora do Brasil, para não ter hoje permissão da cúpula da polícia federal para falar a jornalistas.."Diante da tragédia que estamos vivendo, eu declaro voto no Lula com todo o vigor do meu peito, a preocupação dele com a pobreza, com a desigualdade social e com o bem-estar das pessoas sempre se demonstrou muito verdadeira, tudo isso me marcou, nunca o vi deprimido, na carceragem era um sujeito humilde, que sempre demonstrou gratidão e compaixão por quem estava ali com ele", desabafou Chastalo, a 7 de outubro, dias após a primeira volta eleitoral. "Como tenho absoluto desprezo pelo governo que está aí, por causa dos ataques à democracia, da falta de civilidade, do desamor gigante, do ódio estimulado entre as pessoas, sinto-me moralmente obrigado a manifestar-me"..Por ser o guarda prisional de Lula, conheceu o filósofo Noam Chomsky, o ator Danny Glover, o músico Chico Buarque e outros visitantes ilustres - "tirei um curso de ciência política, e não só, naqueles 580 dias", costuma dizer Chastalo, que se formou em Direito antes de cumprir o sonho de ser polícia. O escritor cubano Leonardo Padura instigou-o durante uma visita a escrever um livro de memórias. E Aloizio Mercadante, um dos mais fiéis colaboradores de Lula, ofereceu-lhe Longa Caminhada Até à Liberdade, a autobiografia de Nelson Mandela que aborda nalguns capítulos a relação do líder sul-africano com o seu guarda, Christo Brand, que de opositor fervoroso se tornou apoiante incondicional do homem sob sua custódia..Natural de Cascavel, a mesma cidade do Paulinho, aquele atacante de FC Porto, Sporting e Vitória de Guimarães que brilhou no futebol português nos anos 90, Chastalo, 49 anos, era o chefe do núcleo de operações da carceragem da superintendência de Curitiba, onde Lula ficou preso numa cela do último andar com 15 metros quadrados, cama, armário, mesa, televisão e um mini frigorífico partilhado com os guardas. Paulo Rocha Gonçalves Júnior, nascido em Londrina há 51 anos, era o subchefe.."Competia-me abrir a cela às 8 horas, fechá-la às 17, conduzir as visitas que ele podia receber à quinta-feira, além das reuniões diárias com advogados, levar-lhe as refeições e transportá-lo para o local onde tinha direito ao período de banho de sol mas sem contacto com os demais presos", diz ao DN Paulão, como é tratado por Lula. Esses demais presos eram os delatores do agora presidente: o seu ex-ministro Antonio Palocci e o empresário da construção civil Léo Pinheiro.."Conversávamos muito todos os dias, sobretudo aos fins-de-semana, quando ele não podia receber visitas, falávamos de política - ele na cela já tinha muita confiança de que disputaria a próxima eleição e voltaria ao Planalto -, de programas de televisão, como o "Domingão do Faustão", porque ele só tinha direito aos canais abertos, de futebol, eu sou do Athletico Paranaense e do Flamengo mas como o meu pai era do Corinthians simpatizo com o clube do Lula, dos livros que trocávamos, como Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, Escravidão, de Laurentino Gomes, e outros".."E de família, claro", lembra Paulão. "Foi no meu ombro que ele chorou depois de saber da morte do neto [Arthur, sete anos, vítima de meningite meningocócica], o Chastalo fez questão de lhe contar pessoalmente para que ele não soubesse pela televisão".."Com a morte do irmão mais velho [Genival da Silva, conhecido como Vavá, aos 79 anos, vítima de cancro], que ocorreu também durante o período da prisão, o Lula ficou muito triste, mas o irmão tinha alguma idade, problemas de saúde, já a morte do neto, ele sentiu como antinatural, como inesperada, foi o pior momento, sem dúvida, daqueles 580 dias"..Lula ocupava o tempo na cela a ver jogos do Corinthians, a ouvir música - "como ele gosta desse tal de canto gregoriano..." - e a caminhar na passadeira para não perder a forma. "Depois eu levei-lhe uns elásticos para ele completar os treinos", lembra Paulão. Chastalo, por sua vez, entregava-lhe fruta fresca de um pomar da chácara da família - "preferia uma cervejinha, cara", respondia, desiludido, o presidente eleito..Numa mesa de cabeceira, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, de Xangô, orixá das religiões afro-brasileiras, e outras peças num altar improvisado. Pelas paredes, fotos da família, incluindo do neto Arthur..Mas nem tudo era permitido ao ilustre prisioneiro. Chastalo proibiu a entrada de alimentos fora do padrão trazidos pelos advogados, além de uma garrafa de cachaça oferecida por um admirador do presidente. "O senhor insistiu na receção da superintendência, dizendo que era uma das melhores pingas de Minas Gerais, mas com muita paciência o Jorge conseguiu convencer o sujeito a levá-la embora", lembra Bruna Chastalo. Uma fã de Lula, por sua vez, queria dar-lhe um vaso de flores que, por ser de vidro, também acabou vetado, assim como um crucifixo, entregue por outra admiradora, por ter pontas de ferro..Já as cerca de 500 cartas, as sopas e as pen drives com vídeos a contar as novidades de lá de fora que lhe levava Janja da Silva, a mulher que está a poucas horas de se tornar primeira-dama do Brasil, eram autorizadas. Chastalo queria tratar Lula com equilíbrio, sem benefícios especiais mas com o respeito devido a um ex-chefe de Estado..O agente, graças à pinta de ator de cinema, foi o terceiro elemento da polícia federal a ganhar estatuto de celebridade durante a Operação Lava-Jato, depois de Newton Ishii, o "japonês da federal", famoso por aparecer sempre de óculos escuros e cara grave ao lado dos presos mais mediáticos mas que chegou a ser, ele próprio, detido, em 2016, por facilitação de contrabando, e de Lucas Valença, o bem parecido "hipster da federal", que acabou morto, no último mês de março, ao tentar invadir uma propriedade rural, em Goiás..Mas se Jorge, Bruna e as filhas vão assistir à cerimónia da posse na aridez da capital peruana a milhares de quilómetros de Brasília, Paulão estará in loco na Esplanada dos Ministérios. "O meu grupo da polícia federal estará na capital federal, não sei ainda em que ponto da cerimónia, só sei que não ficarei com os chefes de Estado estrangeiros, estarei por perto das autoridades brasileiras"..Paulão sabe, no entanto, que o espera uma missão de risco. "Tendo em conta as ameaças recentes de bombas e a eventualidade de ataques terroristas, a operação será exercida com todo o cuidado"..Trocará, ainda assim, um abraço com o eleito, como trocou vários ao longo da campanha eleitoral: "Na campanha, todos os candidatos têm direito a proteção da polícia federal e, eventualmente, a escolher alguns agentes de confiança, por isso ele escolheu-me".."Em quem votei nas eleições? Sei que o Chastalo teve alguns problemas quando assumiu que votou no Lula, porque na polícia federal a maioria escolheu seguramente o outro candidato, eu nunca disse a ninguém em quem votei, mas vou dizer agora: votei nele também, é claro", admitiu baixinho para que ninguém o ouça..dnot@dn.pt