As calças beges têm salpicos de tinta vermelha, há uma aliança de namoro no anelar, os dedos estão enfarruscados de spray preto. E o desenho da T-shirt apresenta-o antes que ele diga quem é: Vand-Artist. Saberíamos mais tarde que foi desenhada por ele: Mr. Dheo, 25 anos, dois metros de altura, writer profissional, vila gaiense. A NS" viu-lhe o rosto, terno, jovem, de olhar sereno. Para a foto prefere um certo anonimato. Como no nome. Uma espécie de marketing. «Homem-sem-rosto»: ainda que a imagem e o nome estejam à solta na internet. «Deve dar jeito ser assim alto, chegas onde queres para pintar», quebramos o gelo, baixamos a formalidade, gracejando com um dos nomes mais propalados, actualmente, do graffiti nacional. Diz não ter «noção» desse reconhecimento, embora de uma simples pesquisa na internet saiam inúmeras referências e atributos como «artista compulsivo» e «autodidacta». E uma imagem de marca: www.mrdheo.com.Mr. Dheo não tem formação artística, começou «a sério» aos 15 anos. Aos 3, diz a lenda, que desmistifica como sendo verdade, já recortava letras do jornal, e hoje vive do graffiti. Empresário por conta própria. Chegou a estar na incubadora de negócios criativos da Fundação de Serralves.O artista de rua diz que hoje, distante da «fase louca da adolescência», é «muito caseiro». «Tenho uma relação estável, uma família unida, tenho a sorte de ver os meus sobrinhos todos os dias e é isso que me preenche.» Tomamos nota: é daqui que lhe vem a inspiração. E desde já desmistificamos um erro comum quando se fala desta arte: quem faz graffiti é writer; não «graffiter»!Pede que o guiemos na entrevista, embora seja ele, aqui, o orientador pelos seus lugares de referência. Sai-lhe, espontâneo, um sorriso terno. E a expressão jovem só endurece para criticar a forma como se olha cá, em plano picado, para o graffiti. «Marginal», lato senso, diz, seco. «A arte não faz de nós marginais», acrescenta, perdendo a conta às vezes em que foi abordado pela polícia por estar a pintar paredes. E, no caso dele, as pinturas são rostos de hiper-realidade fotográfica. Auto-retratos, também, caras que parecem querer sair da parede e entrar-nos na vida.O ano passado deixou a marca delas nos subúrbios de São Paulo, quando foi convidado para ser um dos artistas da 1.ª Bienal de Graffiti Fine Art. O graffiti reconhecido numa das maiores metrópoles da América Latina, berço de nomes mediáticos da arte como Osgemeos (com trabalhos no MOMA em Nova Iorque e no Museu Berardo). Mas os muros de Salvador da Bahia e Manchester também têm assinatura a spray de fermento nacional: Mr. Dheo. SubúrbiosSão quase três da tarde num quente pós-almoço, em dias de Primavera, e Mr. Dheo espera-nos, calmamente sentado, na estação de comboios de Valadares, depois de cruzarmos a ponte do Douro, que separa o Porto de Vila Nova de Gaia. Das janelas do inter-regional vemos já um muro longo, uma parede despida a tijolo, com desenhos coloridos: rostos a spray, palavras garrafais. Um café antes da conversa. E um telefonema. Os dedos deslizam no ecrã do telemóvel da moda. Ouve-se a palavra «Católica» e, de imediato, percebemos: o writer foi convidado para pintar uma parede no Festival Audiovisual Black&White, dessa Universidade, que decorreu no início de Maio. «Tenho tido a sorte de ter muito trabalho», confidencia, lisonjeado. Mudou o horário de expediente para se encontrar connosco. Desde 2005, sobretudo, o currículo engrossou; a agenda ficou recheada.Os muros da fábrica ao lado da estação de Valadares têm trabalhos antigos. Um hall of fame, por trás do arame; no meio, os trilhos do comboio. Vários desenhos, estilos, palavras. «Pensamos nas cores, na temática e esta é uma das grandes mais valias no graffiti: vários artistas a trabalhar numa única tela», contextualiza. «Consegue-se ceder em prol do conjunto final», garante. E aquelas imagens que são homens com rosto ampliado, com texturas que lhe dão vida e realismo, como consegue reproduzi-los? Exímia memória visual? «O hiper-realismo é inalcançável; o meu trabalho é baseado em fotografias; um dia hei-de lá chegar. E este resultado tem uma base: sessenta por cento de estudo e quarenta por cento de improviso.»Há quem pense que o graffiti são rabiscos sujos para quem não tem o que fazer. Provocamos: é? «O graffiti de qualidade exige estudo. Essa ideia é também um bocado o reflexo do país, do que se pensa: as pessoas não imaginam o trabalho que dá.» Admite: preconceito e desconhecimento. Já que deu o epílogo, desenvolva: «Isso passa-se um bocado com as autoridades. Eu nunca vivi uma situação de vida ou morte; de perigo sim, porque na rua estamos sujeitos a tudo; mas a relação dos writers, mesmo os que estão a pintar em muros autorizados, com as autoridades é sempre tensa. É sempre um jogo de negociação. Mesmo quando eles já vêm a correr de cassetete eu fico na minha para perceberem que não vou fugir e que não estou a fazer nada ilegal: estou a fazer a minha arte!»Um negócio?Mr. Dheo, que já foi ASAK - o nome actual surgiu de uma conjugação de palavras, sem intenção lógica, desmistifica - levou-nos escada abaixo, depois da estação. Há um muro que faz curva, seguindo a estrada. Há pássaros em chilreio de tarde, árvores altas a fazer sombra. O muro é outro hall of fame, onde se põe à prova o máximo de técnicas possíveis. «Trago aqui amigos especiais para pintar. O dono da casa autorizou-nos. Era uma parede cinzenta.» Agora: azul-ciano, rosa-fúcsia, pretos, laranjas, verdes: wildstyle (quando as letras gordas ficam selvagens); um homem-sem-rosto reproduzido, uma lollipop deitada, de liga de renda branca; cabeça de vaca. E uma imagem: três rostos obcecados, olhando uma lata de spray como pêndulo hipnotizador; luz pontual.Mas e agora que virou empresário, com clientes como a Reebok, Optimus, FC Porto, Sonae, Hard Club, Super Bock, a rua ainda o seduz? Apressa-se a desmentir uma infâmia. «Sim, sou incapaz de não andar na rua; é a essência daquilo que realmente me deixa feliz.»E a malta não o critica? Graffiti e negócio são compatíveis? A arte «ilegal» a entrar nas galerias, no patrocínio, como mercadoria? «Desde que o artista se mantenha com os mesmos ideais, desde que as empresas manifestem interesse nesse trabalho, ele tem de ter um valor. Se há cada vez mais necessidade de aprimorar técnica e a nossa filosofia de vida é melhorar, também, o espaço público, [o negócio] é um processo natural.» Admite, no entanto, que as críticas possam existir. Um argumento de defesa: «Também não sei qual é a vantagem de andar toda a vida a pintar comboios, a levar com processos.»No ano passado Mr. Dheo personalizou um presente do clube dos dragões para o Arsenal no jogo da UEFA Champions League. Em 2009 ganhou o prémio nacional de indústrias criativas. Fez exposições. Deu workshops. E já recusou trabalho. «A grande vitória para mim é que quem me contrata quer o Mr. Dheo e não um desenho de graffiti qualquer. Consigo manter o meu trabalho e a minha criatividade, não vou pintar a Hello Kitty, não forço nada.» Não tem fórmulas secretas de sucesso, apenas «suor» e «paixão» pelo que faz.E, apesar de os difusores de spray terem diferentes válvulas (riscos mais finos, e mais grossos, quase como pincéis), «a coisa que mais importa na carreira do graffiti é o tempo que leva a ganhar essa sensibilidade com que o dedo pulveriza.» E as mãos dele estão sempre nuas, na vida e a pintar, por isso, com rastos de spray.As tintas não se misturam Mr. Dheo: «Todas as minhas imagens têm sempre um simbolismo, uma mensagem.» Na técnica, autodidacta. «Pesquiso constantemente imagens que visualmente sejam mais apelativas, nisso sou muito exigente.» E aponta para a parede: «Esta imagem originalmente não era assim.» Também improvisa. Onde estamos: a olhar para o muro de uma escola em Leça da Palmeira. Lá, um graffiti, «Opressão»: um rosto central macerado de olheiras pesadas e de boca amordaçada de fita-adesiva; uma boca puxada e um corpo sentado com um saco plástico enfiado na cabeça, com tinta cinzenta a escorrer. Interpretação livre: não falo, não penso, não vejo - não respiro. «Tinha de mostrar este trabalho porque me diz muito», confidencia.Depois de Valadares, Mr. Dheo pegou no carro e trouxe-nos a este canto «especial». São quase seis da tarde e a luz ficou mais polarizada. Aquele cinza na parede, no rosto, a servir de relevo à imagem é diferente. «É branco transparente, assim como há preto transparente. Essa foi uma das grandes invenções das marcas de latas. É como se aplicássemos uma "máscara" no Photoshop para maior efeito de luz e sombras. É que as tintas para graffiti não se misturam, como no óleo, para atingir várias tonalidades.» E quais são os tons de vida de Mr. Dheo? «Há muitas coisas que se fala e publica a meu respeito mas é, para mim, difícil ter essa percepção de reconhecimento. Eu tenho noção do meu valor, claro, mas consigo ser muito autocrítico e muito exigente comigo. Muitos elogios e críticas positivas eu não consigo interiorizar, porque tenho uma visão muito própria sobre o assunto; e a minha necessidade de crescimento pessoal e profissional.» E um enternecimento: «Ainda me surpreendo muito na rua, como aconteceu aqui nesta escola: pessoas de 70 e 80 anos a virem-me agradecer o facto de estar aqui a embelezar um muro.»Guia-nos pelo hall of fame lateral da escola, confidencia desalento, que os trabalhadores independentes como ele são espoliados nos impostos de recibos verdes. Muitos descontos para quem não tem direito a nada. «Adoro o meu país, adoro aquilo que faço e não me vejo a fazer outra coisa, mas...» E fala em jogo de cintura diário. Fala em tornar o país melhor. Só que anda, agora, a apontar o azimute para um salto lá para fora. Ainda não sabe bem para onde: «gostaria!» Mexe na aliança. E deixa um recado: «Não quero que falem do meu nome verdadeiro, sou o Mr. Dheo, é a imagem de marca de um writer.» Como a tinta de spray: há coisas que não se misturam!BYMALODJA«Essa imagem que fotografaste se a usares deves referir que é da crew, não é exclusiva minha», diz o writer Mr. Dheo, depois de darmos o clique para um mural com uma imagem que tem um super-herói (parece uma reinterpretação do Capitão América) e uns bonecos-monstrinhos-coloridos num muro perto da estação de comboios de Valadares. A crew chama-se Bymalodja («bái-me-à-loja») e é o grupo de amigos writers que ele integra, desde final de 2008. Os nomes mantêm-se no anonimato, diz, como quem realça que o todo, o grupo, vale mais que o individual. Importa o trabalho final, de equipa.Há alguns vídeos na internet, pelo YouTube, do grupo a trabalhar em graffiti, como por exemplo o «Bymalodja 1st Production», com música de Emir Kusturica que dá todo o making off da imagem desse «Capitão América», com um grito em balão de diálogo «Bymalodja».