Molero com sotaque no Teatro D. Maria II

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Foi há cerca de 25 anos que, passeando por entre as prateleiras da Livraria Camões, no Rio de Janeiro, Aderbal Freire Filho encontrou O Que Diz Molero, a obra do português Dinis Machado (nascido em 1930). "Folheei e fiquei maravilhado com as primeiras páginas, achei de uma originalidade surpreendente a que depois se acrescentava qualidade", conta o encenador brasileiro, 65 anos.

A ideia de transformar O Que Diz Molero em espectáculo surgiu mais tarde, só depois de, em 1990, ter estreado A Mulher Carioca aos 22 Anos a partir do livro do brasileiro João de Minas e com ele ter inaugurado um novo género teatral a que chamou "romance em cena". O princípio é este: pegar num romance e colocá-lo em palco tal como ele é, com todas as suas palavras, sem adaptação de texto. "Não existe narrador. Extraí todas as partes em que se descreve alguém e atribuí-as às respectivas personagens. Mais: a personagem fala de si mesma na terceira pessoa mas actuando em primeira porque todas as falas são ditas já representando." Parece confuso, mas na prática resulta.

Em 2003, Aderbal convocou novamente a equipa do Centro de Demolição e Construção de Espectáculo (o nome já é todo um programa) para um novo romance-em-cena: O Que Diz Molero, obra escrita em 1977. Desta vez com um desafio acrescido: o livro tem dois narradores (Austin e Mr. Deluxe) que dialogam o tempo todo. É através deles que conhecemos Molero, funcionário que tem como tarefa seguir o Rapaz e fazer o relato das suas aventuras. A história que se conta é, em última análise, a do Rapaz e das pessoas com quem se encontra. História cruzada e às vezes ultrapassada pela do próprio Molero.

O trabalho de dramaturgia complicou-se uma vez que todas as personagens foram extraídas das falas de Austin e Mr. Deluxe. O Rapaz de quem se fala está presente em quase todas as cenas, ao contrário do fugidio Molero que só aparece uma vez, de relance.

O espectáculo em tom de comédia estreou-se com cinco horas e muitos elogios, voltou para nova temporada com uma versão mais curta de duas horas e meia e chega hoje ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, ainda mais reduzido. O "romance em cena" já não é bem um romance completo em cena. As personagens adoptaram o gerúndio e mudaram algumas expressões pouco perceptíveis no Brasil. Ainda assim, Aderbal Freire Filho acredita ter mantido o espírito da obra. "Em primeiro lugar está a manutenção do sabor da literatura. Eu sou um leitor, antes de tudo, e quero trazer o fascínio da leitura para o palco", explica. "Não faz sentido discutir se o teatro é da palavra ou da imagem. Impossível separá-las. Temos é que trazer a palavra para a cena de modo a torná-la atractiva. Trazer o épico para o dramático. Eu gosto de teatro com muitas palavras." De tal forma, que entretanto já fez outro romance-em-cena, O Púcaro Búlgaro, do brasileiro Campos de Carvalho.

Com cenário do português José Manuel Castanheira, O Que Diz Molero fica em cena até 4 de Fevereiro.

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