Modestas proposições

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O Dicionário Houaiss dá a seguinte definição para o termo "perífrase": "frase ou recurso verbal que exprime aquilo que poderia ser expresso por menor número de palavras". Ora, depois de muito magicar sobre as soluções possíveis para uma Europa em que as classes políticas, intelectuais, eclesiásticas e outras andam borradas de pânico ante as reacções de alguns sectores islâmicos mais radicais, eu cheguei à conclusão de que, à falta de dispositivos de defesa eficaz, tanto no plano moral, como no militar e até no da simples manutenção da ordem pública, o melhor é começarmos todos a lançar mão da perífrase para dizermos o que nos vai na alma.

Não penso aliás que devamos limitar-nos à questão islâmica. Amanhã, católicos, ou judeus, ou budistas, ou outros quaisquer crentes, podem reputar-se profundamente ofendidos pelo nosso uso inconsiderado das palavras e começar a apedrejar-nos ou a fazer-nos coisas ainda piores. Mais vale lançar mão da perífrase nesses casos malfadados.

Assim, nunca é de falar nos árabes, chamando-os pelo nome. Deve-se dizer, de preferência, com a dignidade e o andamento grave do alexandrino, coisas como "esses que em Poitiers sofreram um desaire", ou "os que hão-de desflorar as mil virgens post mortem", o que até poderá rimar eficazmente com "se podem vigiar, porém nada lhes cortem".

Quanto ao intonso profeta cujo hirsuto apêndice facial não me atrevo a referir expressis verbis e muito menos a invocar aqui, ocorre-me que, em vez de expressões gastas e de um populismo soez, tais como "fugir como o Diabo da cruz e Maomé do toucinho", poderá dizer-se, bem mais elegantemente, "foge o anjo caído a um madeiro alçado / e há quem do cerdo à banha escape horrorizado". Também se pode recorrer a decassílabos de venerável recorte camoniano para dar ideia de certas cominações mais bizarras. Por exemplo: "- Não pode o islão beber, disse sereno, / de envinagrados cascos de Sileno."

Ainda por cima, como hoje ninguém sabe o significado histórico de Poitiers, o significado mitológico de Sileno ou, sequer, quais sejam as acepções mais comezinhas de termos como "cerdo" e "casco", tudo fica dito mui discreta e saudavelmente. De resto, se em vez de "cristãos" dissermos "os que de Constantino vão atrás", não faltará quem pense tratar-se de publicidade a uma marca de brandy.

Na mesma onda, deve evitar-se referir os judeus, para que nenhum rabino e nenhuma sinagoga se venham a ofender. É melhor dizer "os que andam sem prepúcio errando pelo mundo", ou "os netos de Noé que já não lançam pombas / de Hamas e Hezbollah hão de evitar as bombas", assim como, em vez de se falar em Buda, não haja um dia destes uma invasão de monges em túnicas cor de açafrão a vociferar exaltadíssimos pelas avenidas e praças da Europa, é melhor dizer "o que olha seu umbigo em múltiplos de jade". E para, na Índia, não se ferir qualquer susceptibilidade, mais valerá recorrer à redondilha, à maneira inconfundível do poeta Aleixo: "lá a vaca não se come / porque lhe chamam sagrada; / para comer não há nada / e há gente a morrer de fome."

Também vivo em profunda apreensão ante as actuais veleidades nucleares do Irão. Sempre que se fala nisso, corre-se o risco nada despiciendo de algum ayatollah ficar deveras sentido e dar ordens irresponsáveis ao Governo do país para comprar mais centrifugadoras e mais urânio. É preciso muito cuidado! É preciso disfarçar o mais possível! Mas, ainda assim, é preciso dizer alguma coisa, desde que quem diz fique ao abrigo da sanha e das ferozes represálias do neonazismo iraniano. Sugiro por isso a simples adaptação de um provérbio com este resultado assaz abrangente: "o comer e o nuclear, tudo está no começar."

A Europa tem uma boa tradição de linguagens cifradas: as inquisições e as suas fogueiras, as guerras de religião e as suas matanças, as revoluções e os seus genocídios, as polícias políticas e as suas torturas e, desde há algum tempo, o politicamente correcto e as suas idiotias, sedimentaram técnicas e processos circunloquiais e perifrásticos de dizer uma coisa, fingindo dizer outra e vice-versa. Até no Porto, em tempos da PIDE e de colóquios suspeitos, Karl Marx era referido como "o autor da Sagrada Família", o que acabava por ser tão inócuo como referir os intensos eflúvios místicos da beata Margarida Maria Alacoque.

Tudo isso faz parte da nossa sofisticada herança cultural. E por isso aqui deixo estas modestas proposições.

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