Frank Morrison Spillane, que ganhou lugar cativo entre os criadores de romances policiais como Mickey Spillane, nunca alimentou ilusões quanto ao material literário que produzia. Como fica provado em duas sentenças que o colocam como juiz em causa própria, algo recorrente na sua maior personagem, Mike Hammer. A primeira: "Eu não tenho fãs. Sabem o que tenho? Clientes. E os clientes são amigos". A segunda: "Sou um escritor, não sou um autor. Os escritores ganham dinheiro". Sabia do que falava, este nativo de Brooklyn, Nova Iorque, que - após uma série de empregos temporários, de nadador-salvador a funcionário ao balcão dos armazens Gimbels, passando pelos seus tempos de artista de circo, em que chegou a servir de "bala humana", sendo o seu corpo frazino disparado de um canhão - leva hoje, cem anos precisos volvidos sobre o seu nascimento e quase uma dúzia sobre a sua morte, a contas com um carcinoma no pâncreas: vendeu mais de 225 milhões de livros em todo o mundo, com uma larga maioria entregue ao implacável Hammer, à sua voluptuosa secretária Velda e ao maior amigo do detective, Pat Chambers, capitão da polícia de Nova Iorque..Spillane terá sido, de resto, um dos poucos escritores centrados no crime que conseguiu vestir a pele do seu próprio herói no cinema - aconteceu em 1963, no filme The Girl Hunters, realizado por Ray Rowland, depois de duas aventuras em que fez de... Spillane e antes de uma aventura como ator na série Columbo e de repetir o papel em Mommy e Mommy"s Day, fitas do fim do século. Mickey até tinha começado por se especializar em guiões para comics, nos anos que antecederam a II Guerra Mundial. Alistou-se como voluntário no dia seguinte ao bombardeamento de Pearl Harbour pelos japoneses, tornando-se piloto de caça e depois instrutor da Força Aérea. De regresso à vida civil, casou-se pela primeira de três vezes, sempre com matrimónios longos. Desse enlace inicial nasceram os seus quatro filhos - razão fundamental pela qual se tornaria escritor, para providenciar o sustento ao agregado familiar. Publicou o seu primeiro livro em 1947 e O Júri Sou Eu vendeu nada menos de seis milhões e meio e cópias, só nos Estados Unidos. O arranque da década de 1950 coincide com a fase mais produtiva de Spillane, capaz - de acordo com amigos e estudiosos da sua vida - de despachar um romance num par de meses. Muito mais tarde, o escritor comentaria: "Eu escrevia realmente depressa. Agora, dói-me mais o traseiro. E já não estou tão cheio de vinagre"..Mas também não dispensou o seu momento triunfal, quando afirmou: "Sou o escritor mais traduzido no mundo, depois de Lenine, Tolstoi, Gorky e Júlio Verne. E eles estão todos mortos"..O "inspetor martelada".É verdade que a personagem criada pelo ator Bud Spencer e que mereceu este "cognome" português, mas seria difícil deixar passar esta oportunidade para esta analogia com a criatura de Spillane, pelo nome (Hammer é martelo) e pela personalidade do detetive. Há quem defenda que se trata do terceiro vértice de um triângulo iniciado em 1930 com a figura de Sam Spade, criação de Dashiell Hammett, e apurado com o inesquecível Philip Marlowe, saído da pena e da alma de Raymond Chandler - todos eles são duros e, de alguma forma, solitários. Mas, por comparação com os seus pares, parece faltar a Mike Hammer algum mistério, alguma ironia e muito cinismo - ele é o protótipo do "touro enraivecido", capaz de se deixar pela ira, e sem remorsos. As cenas de violência que protagoniza deixam, como já foi escrito, "muito pouco espaço à imaginação", são explícitas, podem passar por "golpes baixos" (murros no estômago, pontapés na genitália). Para Hammer, embora reconheça a importância e a dificuldade das tarefas policiais, o importante é a justiça, nunca a lei - e não há qualquer problema se isso passar por ter que matar alguém. Sempre acompanhado da sua fiel pistola, o Colt 45 que usa num coldre debaixo do braço esquerdo, Mike Hammer é um protótipo do justiceiro vingativo e sem limites, nos antípodas do politicamente correto. Machista e quase boçal nos seus juízos, terá perdido as graças dos leitores mais novos por isso mesmo - basta referir que a última edição de Spillane de que há nota em Portugal nos faz recuar até 2005, se descontarmos alguns regressos de coleções especializadas..Mesmo assim, rendeu mais de uma dezena de filmes e telefilmes, bem como três séries de TV, por episódios. Além do próprio Spillane, Hammer teve a cara dos atores Biff Elliot, Brian Keith, Ralph Meeker, Robert Bray, Darren Mc Gavin, Kevin Dobson e, em tempos mais chegados, Armand Assante. Com toda esta diversidade, o rosto que perdura é mesmo o de Stacy Keach, muito auxiliado pelo seu físico robusto e pela sua voz grave. Acaba por ser irónico que aquele que é visto como o melhor filme desenhado a partir de um livro de Mr. Spillane seja Inquietação, de 1954, em que Victor Saville dirige Anthony Quinn no papel de um homem que recupera aos poucos de uma amnésia para se tornar suspeito de um crime, que não sabe se cometeu ou não. O último "sinal" de Spillane no ecrã, grande ou pequeno, já tem vinte anos. Com os livros, a mina ainda não secou: desde a morte do escritor, Max Alan Collins, autor de mistério nascido em 1948, já completou dez manuscritos de Mickey, sempre com Mike Hammer, e tem mais três anunciados (um por um ano) até 2020. Se Spillane, convertido às Testemunhas de Jeová em 1951, dizia dos seus escritos que eram "a pastilha elástica da Literatura norte-americana", é caso para dizer: que grande pastilha!