No Era Uma vez de Tarantino sobre a França ocupada por nazis há muitas personagens de bizarria complexa. Há caça-nazis sanguinários, agentes duplos com charme, beldades francesas com cinefilia extrema, oficiais das SS poliglotas e um crítico de cinema espião. Em Sacanas sem Lei, o actor inglês Michael Fassbender é precisamente esse crítico em missão antinazi. O seu tenente Archie Hicox é um especialista em cinema de G.W. Pabst, cineasta de culto do cinema alemão dos anos vinte. É uma personagem deliciosa, interpretada com requinte extremo por este actor que num curto espaço de tempo se transformou na exportação mais quente de Inglaterra para os EUA. Fassbender, que por ter nascido na Alemanha foi escolhido também por dominar a língua germânica. Mas, acima de tudo, quem vir o filme percebe que ele tem a panache certa para debitar diálogos à Tarantino. E tem também um sorriso matador, o tal murder smile a que o francês François Ozon já tinha recorrido no incompreendido Angel. Ao vivo, esse sorriso é mais aberto e não evoca memórias de um cinema do antigamente. Fala com um sotaque inglês solto, nada empinado. Em conversa exclusiva para Portugal, jura estar transcendentalmente orgulhoso de ser uma das estrelas de um filme de Quentin Tarantino, um dos seus cineastas preferidos. Em jeito de apresentação, começa por dizer: «Utilizo técnicas diferentes como actor. Depende de cada papel. É o que resultar melhor em cada momento, em cada sequência. Vou buscar a inspiração que me convém mais. Um actor tem de saber o que a cena pede. Por exemplo, para certos momentos de O Lago Perfeito era preciso que eu parecesse totalmente vulnerável.» E foi precisamente esse um dos papéis que o lançou para a ribalta. Esse e Fome, onde encarnava com realismo absorvente Bobby Sands, o irlandês que morreu ao fazer greve de fome numa prisão para desafiar o governo de Margaret Thatcher. A partir daí, percebemos que era capaz de todas as transformações possíveis..Tarantino contra TarantinoPara Sacanas sem Lei, Tarantino queria um oficial inglês com charme. Um crítico de cinema que na Segunda Guerra Mundial decide disfarçar-se de nazi para uma missão dos basterds. Se há uma reviravolta na sua personagem, não o revelamos, mas Fassbender aponta pistas: «Tarantino dá reviravoltas a tudo. O interessante aqui é que mostra que o seu amor ao cinema é internacional. Por isso, vai buscar mesmo actores franceses e alemães. E cada um fala a sua própria língua! Talvez, depois disto, todos os filmes em que vemos actores a falar inglês com sotaque alemão venham a parecer ridículos. Resulta tão bem… Todos esses maravilhosos actores oriundos de locais diferentes equilibram tudo! Para além disso, resta dizer que ele não deixa a História confinar esta história.» Pois, porque neste conto fantástico sobre um grupo de soldados americanos à solta na França ocupada eles matam mesmo brutalmente todos os nazis que encontram pela frente. O mesmo conto fantástico que relata uma história de vingança no feminino, tal como acontecia com os dois volumes de Kill Bill e À Prova de Morte. O lado experimental de elevar os diálogos a uma duração que está para além dos parâmetros normais é outra das marcas de um Tarantino que agora já não se preocupa tanto com as outras questões do tempo embrulhado entre o passado e o presente. «Ele está sempre a tentar testar-se a si próprio. Tarantino quer ultrapassar Tarantino. Nessas cenas de diálogos enormes está a tentar esticar a corda até ao máximo. Depois de esticar até àquela duração tenta perceber quando pode ainda continuar a prolongar… A cena da taverna situa-se entre o absurdo e o real. O truque é conseguir aguentar-se algures pelo meio!», nota o actor que foi escolhido por Tarantino aparentemente pela audição que fez: «O meu agente nos EUA chateou-o muito para me conhecer e chegou a enviar DVD com o meu trabalho. Foi assim que consegui que o Tarantino lá me pedisse para ir à audição, já em Berlim, quando estava em pré-produção. Foi interessante porque acabou por ser ele a contracenar comigo numa leitura do guião. Houve um momento em que tive de me acalmar quando dei por mim a pensar “meu Deus! É o Tarantino quem me está a dar as deixas!” Foi a tal cena da taverna…», conta com o tal sorriso aberto.Sobre a sua personagem que pisca o olho a todos os críticos de cinema que ajudaram Tarantino a impor-se no circuito de festivais de cinema, Michael Fassbender acredita no seu bom gosto: «Archie tem razão em ser fã de G.W. Pabst – ele fez filmes espantosos! Penso que ele é um bom crítico de cinema. Quando li o argumento achei o máximo pois também sou meio alemão. Fiquei espantado como um americano sabe tanto sobre o Pabst! Neste argumento não há nada escrito ao acaso! Tarantino está tão apaixonado pelas suas personagens que escreveu biografias para todas. Ele sabe sempre de onde veio Archie ou qualquer outra personagem do filme, mesmo que apareça apenas um bocadinho. Eu vejo filmes, mas o Tarantino é incrível, lembra-se de tudo, sabe tudo!» Talvez faça então sentido pensar que o cinema de Tarantino não tenha que ver com a vida, mas apenas com a réstia das memórias de cinema. Um cinema que vem da cinefilia, do amor pela ficção. Sempre foi assim, agora ainda é mais agudo. .«Não é importante ser protagonista»Outra das particularidades das filmagens de Sacanas sem Lei é que desta vez o processo de montagem foi acelerado. Tarantino queria ter o filme pronto para Cannes e começou a filmar no final do ano passado. Ainda para mais uma grande produção, um filme de época de enormes meios. Mesmo assim, Fassbender garante que no seu caso não acusou a pressão: «Estive quatro semanas na Alemanha a preparar-me. Isso é muito tempo para um actor, mas, claro, toda a equipa, estava a trabalhar contra o relógio.» E, já agora que se fala de pressão, perguntamos-lhe se sente esse factor dos olhos postos em si, sobretudo depois da aclamação de 300 e de Fome. Diz que não, que se limita a ir de emprego para emprego. «Não vale a pena estar a preocupar-me com essas coisas. Não consigo controlar o hype em relação a mim. Sei que mais tarde ou mais cedo vou errar. É inevitável.» Ele e todos sabem que sim, que é mesmo inevitável, mas não o estamos a ver em comédias românticas tolas feitas por uma major norte-americana. «Sim, isso não acontecerá porque decido com muito cuidado as minhas escolhas. Decido através do meu instinto pessoal. Seja como for, este é um bom momento. Estou a gostar deste meu lugar ao sol. A dada altura sei que terei de pagar algum tipo de factura. Portanto, limito-me a desfrutar disto passo a passo. Não é importante ser um protagonista num grande filme de Hollywood. Quero é trabalhar com bons cineastas, continuar a aprender e a fazer trabalhos que me desafiem. A ideia é não parar de me testar.» E em breve vêm aí testes apetecidos. Vamos vê-lo como abusador de menores em Fish Tank, um dos vencedores de Cannes 2009, e em Centurion, um épico inglês onde joga com o físico para dar veracidade a um centurião da Roma Antiga. «Depois de Fome, já consigo recusar papéis. Antes, aceitava tudo o que me aparecia à frente. É um luxo simpático poder dizer não. Após Fome comecei a ser levado a sério, sobretudo devido à cena de 17 minutos a meio do filme… Não há muitos filmes com momentos como esse», conta. Às vezes, o mundo do cinema é justo. Michael Fassbender deu tudo o que tinha no Conservatório e levou a sua paixão pela representação até aos limites. Hoje tornou-se o actor que todos querem ver, do cinema independente britânico aos patamares da grandiosidade dos blockbusters de Hollywood. E agora há também um novo rótulo, «actor de Tarantino», neste caso «bastárrdo» de Tarantino…