Michael Biberstein está aqui (em loop e em retrospetiva)

<em>Michael Biberstein: X - uma retrospetiva</em> inaugura hoje na Culturgest com a obra do pintor suíço-americano
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Quase no final da visita, fazemos a Delfim Sardo a típica pergunta: Quantas obras compõem a exposição Michael Biberstein: X - uma retrospetiva? O foco nos olhos do curador muda, e ele começa a contar em voz alta. Estava a ver mentalmente cada uma das cerca de 90 obras que compõem esta que é, verdadeiramente, a primeira retrospetiva da obra de Mike, como é conhecido entre os seus o pintor suíço-americano, radicado em Portugal desde o final dos anos 1970, onde viveu até à sua morte, em 2013, no Alandroal, Alentejo.

Não será deselegante considerá-la a primeira, porque foi também Delfim Sardo, atual programador de artes visuais da Culturgest, quem fez a curadoria dessa outra exposição chamada de retrospetiva em 1995 na Gulbenkian. "Essa só tinha o trabalho a partir de 1986/87. Aqui fomos ao princípio, a 1972. Uma boa parte desta exposição é completamente inédita. E não o é só para o público em geral, mas para as pessoas que conhecem muito bem a obra do Biberstein", afirmava ainda antes da visita.

As duas galerias da Culturgest estão ocupadas pela obra do homem que haveria de ter como última obra o póstumo Céu para Santa Isabel, que ele já não pôde executar. São 800 m2 pintados a 20 metros do chão no teto da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. E é de facto de um céu que se trata.

Quem é, então, Biberstein, que tinha quase dois metros e que se tornou artista (autodidata) quando David Sylvester, um dos grandes críticos de arte do século XX, e seu professor de História de Arte em Filadélfia, lhe disse que "para compreender algumas coisas em que estava interessado ele tinha de experimentar fazer"? Michael Biberstein: X - uma retrospetiva, que está dividida em dois núcleos, apresenta algumas pistas, sobretudo através desse X que Mike foi marcando - muitas vezes literalmente - ao longo do caminho.

"A primeira parte da exposição é sobre a relação que ele vai pesquisando e tentando compreender entre o espaço, o espectador e a obra. A grande questão dele é sempre: onde é que eu estou face ao que vejo? E esse lugar é sempre marcado espacialmente, e ele marca-o. O X é a marca mais identificável desse lugar. E de alguma maneira configura todo o universo dele", explica o curador. Daí que elementos que vemos na tela migrem para a parede ou para o chão. O contorno de um objeto metálico surge traçado na parede. Foi Julião Sarmento quem o fez. "Pedimos-lhe para vir fazer os desenhos, porque é o artista que mais conviveu com ele."

Julião, com quem conversámos numa das suas visitas a Santa Isabel, enquanto o trabalho era executado e o chamavam para pedir opiniões sobre aquela obra, é direto: "O trabalho do Mike era um trabalho sobre a beleza, o sublime e a transcendência." Os dois conheceram-se muito bem. "Houve uma determinada altura em que tínhamos ateliê juntos. Estávamos juntos todos os dias." Foi, aliás, Julião quem apresentou o pintor à escritora Ana Nobre de Gusmão, que viria a tornar-se a sua mulher, e com quem Biberstein viveu 34 anos, até ao fim. "A melhor história de que eu me lembro desse ateliê foi o Mike dizer assim: Eu já não aguento ouvir a música dos Twin Peaks! Não aguento", recordava então Ana. "Eu ouvia aquela merda em repeat", ria-se Julião.

Foi em casa de Julião Sarmento que apareceu a cassete com aquela que foi a banda sonora da instalação que Biberstein fez em 1991 no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), com três obras em torno do Náufrago de Vernet. Está lá o Vernet (emprestado pelo MNAA), as três obras, numa sala, e estará também a banda sonora que tem a voz de Mike a ler textos. E quem a assina? Alberto Iglesias, o compositor de várias bandas sonoras para os filmes de Pedro Almodóvar, e grande amigo de Mike.

Não ficam por aqui as ligações à música. "Ele foi roadie do Tim Buckley. Andou com o Jeff Buckley ao colo. E há uma fotografia dele a segurar uma cerveja que lhe é passada pela Janis Joplin num concerto. Tem esse lado rock and roll. Depois interessou-se muito pela música improvisada, pelo jazz. Coltrane era uma referência muito grande para ele. No funeral, a música que se ouviu foi A Love Supreme, lá em Santa Isabel. Não foi uma cerimónia religiosa, porque ele não era religioso, era agnóstico militante, como dizia", recorda Delfim Sardo. Não seria a última vez que se falaria de música.

Todavia, para chegarmos a essa parte da conversa, há que atravessar as pequenas telas marcadas e traçadas, os desenhos, a gaze tingida com cores que logo lhe associamos - conhecendo a sua obra posterior -, as peças em gesso com assinaturas dos pedreiros do Mosteiro de Alcobaça, as pinturas monocromáticas.

Chegamos ao segundo núcleo, quando aparecem verdadeiramente as suas paisagens, que são sempre interiores, em parte herança do romantismo, de Turner a Casper Wolf ou a Caspar David Friedrich. Algumas das obras estão divididas em três, uma parte de pintura e as outras duas de tecido negro esticado. "É uma coisa musical, como no barroco: é contraponto. É a interrupção do fluxo do olhar na paisagem, que esbarra numa zona cega de pintura", explica Delfim Sardo.

E ainda a música acerca daquelas enormes telas que figuram na parede e cujo tamanho é ainda maior do que as suas medidas, e vai até à amplitude do seu alcance. "Quando eu digo que elas atraem, não é só o olhar, elas atraem-nos fisicamente. Nós somos compelidos a orientarmo-nos no espaço perante estas pinturas. É a ideia de produzir uma pintura que é imersiva e ambiental. Isto cria um ambiente, da mesma maneira que um som cria um ambiente. E esse é um aspeto muito importante do trabalho do Biberstein." São 20 a 30 camadas de uma espécie de aguarela líquida, que poucas pistas deixam além daquilo em que se tornam, e que muitas vezes só terminava já na galeria, contou a sua mulher. Aqui está tudo fechado. De tal maneira que, depois das grandes telas, a exposição termina com "três quadrinhos muito pequenos". Claro, lá está o X. "Faz um loop", diz Delfim.

Michael Biberstein: X - uma retrospetiva

A exposição inaugura hoje às 22.00 e estará patente na Culturgest, em Lisboa, até 9 de setembro. Bilhetes a 4 €

Amigos em torno das obras do Mike

Numa programação paralela à exposição, que deverá começar em junho com Julião Sarmento, Delfim Sardo convidou pessoas próximas de Michael Biberstein para escolherem uma sala ou uma peça da exposição e falarem "face a ela, dialogarem com a obra face a ela", explicou ao DN o curador. "Pedi ao Fernando Bello, que era um amigo muito próximo do Mike, ao Julião também, e ao Nuno Crespo para fazerem cada um deles uma conversa. E pedi ao Norberto Lobo para fazer a mesma coisa, para pensar a pintura do Mike por via de música. Ele vai fazer uma espécie de microconcerto em frente a uma obra do Mike escolhida por ele." Norberto Lobo, sobrinho de Ana Nobre de Gusmão, a escritora casada com Biberstein, gravou os seus dois primeiros discos no Alandroal, onde Mike vivia e trabalhava, e foi o pintor quem assinou as capas desses primeiros discos.

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