Claire - "We"re murderers, Francis.".Underwood - "We"re survivors!".O herói desta história, Frank Underwood, costuma dizer que é um erro valorizar o dinheiro: o que realmente interessa é o poder. House of Cards é isso. Apenas. Uma excelente série americana sobre o poder, como se conquista, contra tudo e todos. Podia ser um dark western, podia ser Eisenstein, uma peça de Shakespeare. Mas é mais Beau Willimon (Nos Idos de Março)..Comecemos pelo princípio: House of Cards nasceu há uns anos na BBC. Foi um sucesso do pós-tatcherismo. A versão inglesa é mais crível, mas a BBC também não é a Netflix e já não estamos nos noventas..Esta House of Cards pertence à nova geração de conteúdos desta era pós-televisão. Foi produzida pela Netflix, um conceito novo de fabrico e consumo de entretenimento. Adeus televisão, o tempo é de streaming - em que uma temporada passa de seguida como se não houvesse semanas nas nossas doces vidas habituadas a ciclos que se repetem..A "televisão" do presente não tem hora marcada porque neste tempo ninguém pode suportar luxos - como o tempo. Aliás, a televisão acabou e nem demos por isso. Um tablet ou o smartphone fazem as vezes do aparelho clássico que as famílias guardavam numa divisão da casa. E já nada "passa" na televisão porque o poder do comando mora agora nos gigas da caixa onde se armazena o que se quer para ver quando se quiser, ou puder. Mas isso é outra conversa.."Para aqueles como nós poderem subir ao topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Há apenas uma regra: caçar ou ser caçado.".Vamos ao que interessa: nesta história o Bem só é referência para quem vê. Nada importa e "moral" é palavra proibida. Não é uma história de corrupção, assassínio, tráfico de influências, financiamentos de campanhas, dinheiro, sexo, cumplicidades. Estão lá todos mas apenas como adereços de uma encenação maior..Em House of Cards tudo é instrumental: a jornalista imberbe que se prostitui quer o poder e dorme com Underwood para estar mais próxima do poder. Usa o político como o político a usa para passar informação que lhe interessa para conquistar mais poder. Não há muito mais a acrescentar. O resto é feito pela frieza da realização, pelas falas aforísticas de Frank Underwood, por planos de Washington e pelas técnicas do costume que nos colam ao enredo.."Um grande homem uma vez disse: tudo é sobre sexo. Exceto o sexo. O sexo é sobre o poder.".Os encontros íntimos com a jornalista num apartamento pós-adolescente são fait-divers. Aliás, ao longo das duas primeiras temporadas Underwood pratica menos sexo que um clérigo de Gil Vicente. Só o poder conta. Curiosamente, um dos poucos momentos de sexo lúdico é um encontro a três, depois de algumas cervejas, entre o casal Francis/Claire e um segurança devoto. Também aqui House of Cards é coerente - porque na vida e na literatura há normalmente mais sexo.."É assim que se devora uma baleia, uma dentada de cada vez.".A outra fonte de prazer de Frank Underwood é a comida simples: aquilo que os portugueses chamam "piano" de porco, grelhado com um molho doce e picante. Um homem simples, de hábitos simples, sem filhos e que odeia crianças..Não vale a pena teorizar muito ou procurar no guião respostas profundas sobre o valor da democracia, a importância da comunicação, o jogo dos lobistas, ou o papel dos jornais e da televisão na política. House of Cards centra-se no darwinismo puro e o darwinismo puro não é contemplativo com valores e regras. Axiologia é matéria de academia e Frank é um rústico.."A democracia é tão sobrevalori-zada.".Underwood chega a presidente dos Estados Unidos sem um voto. A força da sua política é a determinação em chegar lá. Não há vislumbre de ideologia e o partido é um bando de interesses a servir interesses..Ao longo dos episódios vamos percebendo que Frank chegará "lá" e quando chegar tudo acaba - como sempre tudo acaba neste castelo de cartas que é a vida.."Não é o início da história que eu temo, é não saber como vai acabar.".Frank Underwood é personagem de Maquiavel ou de série dramática? É manifestação do Mal ou apenas humano? Talvez seja um humano adaptado à "televisão"..* Administrador da JL&M