Martha Gellhorn, uma mulher de armas

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Num artigo publicado em 2001 no jornal britânico The Guardian a autora da peça antecipava já uma espécie de obituário da idosa correspondente de guerra Martha Gellhorn ao relatar as suas queixas sobre a forma como a retratavam para a posteridade. Gellhorn, que chegara a confessar a um amigo que havia "um homenzinho que ocupava o seu tempo a desenterrar histórias sobre mim, e só está à espera que eu morra para as publicar", surgia nesse extenso texto amplamente comentada e radiografada em vida. Fazendo uso da biografia que esse "homenzinho" publicara numa edição norte-americana - não suportou a espera até ao ano do falecimento (1998) -, a autora do artigo recuperara certas pérolas para interessar e esclarecer a seu modo os leitores, definindo-a com um parágrafo onde se escrevia: "Ela sabia como o sexo era importante para a maioria dos homens, e utilizava-o não apenas para agradar aos homens como para obter boas histórias. Dormiu com generais; teve romances de uma única noite com soldados que iam morrer no dia seguinte. Vestia-se elegantemente, pintava-se, flirtava com homens conforme era seu interesse".

Martha Gellhorn não saía bem dessa biografia e exigiu que partes dela fossem retiradas para que o retrato para a posteridade não fosse o de uma mulher que "fumava, bebia e viajava a seu bel-prazer" e que se vestia com roupas compradas na 5.ª Avenida enquanto as balas zuniam por perto, matavam as populações vítimas das guerras e os desgraçados dos soldados que combatiam em várias frentes morriam a poucos metros de si. Principalmente, não queria que o seu casamento com Ernest Hemingway fosse algo marcante na sua vida...

E com razão, porque, como se pode depreender das quase 500 páginas desta tradução do The Face of War, a sua interpretação dos conflitos que cobriu como repórter de guerra durante o século XX é bem diferente daquela com que os seus pares abalados com o traiçoeiro ataque a Pearl Harbour ficaram desse referido período da história. Até porque Gellhorn podia vestir-se na Sak's, ser fotografada por Robert Capa a caçar, seduzir as fontes, beber talegadas de álcool, ir a touradas, viajar pelo mundo, instalar--se em locais da moda, mas a sua forma de viver nunca foi como o propalado American way of life sugeria.

A vida de Martha Gellhorn surge em grande parte reproduzida neste volume porque se cola ao próprio índice de A Face da Guerra. Aos 22 anos viaja pela primeira vez para a Europa, mas é em 1937 que regressa no estatuto de correspondente de guerra. A partir daí está sempre em busca dos cenários bélicos que relata em sucessivas reportagens efectuadas na Guerra Civil de Espanha, na Finlândia, na China, na II Guerra Mundial, em Java, no Vietname, na guerra dos Seis Dias e na invasão do Panamá. Gellhorn só não cobre as últimas guerras (Kosovo, Iraque, p.e.) porque, confessa, não tinha idade nem forças para tal aventura.

Esta edição portuguesa é a última versão do livro que foi construído em várias fases e traz no final as sucessivas introduções e conclusões publicadas (em 1959, 1967, 1986 e 1988). A beleza da sua escrita, cheia de recursos e capacidades, faz da crueza da guerra quase um grande romance, que se deve ler enquanto é tempo.

Nenhuma outra mulher reportou a guerra como esta americana

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