Ano de 1973. Na penumbra das florestas da ilha do Bornéu, em território malaio, é coletada uma planta de bagas azuis. Uma espécie até então desconhecida para a ciência à qual é atribuído o género Psychotria, planta da imensa família das Rubiaceae que acolhe o nosso bem conhecido café. O exemplar é entregue aos cuidados do britânico Kew Gardens, os Reais Jardins Botânicos nascidos no início do século XIX. A Psychotria junta-se aos sete milhões de espécimes do herbário de uma instituição com os objetivos da investigação cientifica e tecnológica nas áreas da botânica e jardinagem..Ano de 2021. Tianyi Yu, aluno a completar a sua tese de mestrado em Kew Gardens, detém-se perante uma pintura a óleo à guarda da instituição. Curious Plants from the Forest of Matang, Sarawak, Borneo, pintado in loco na década de 1870, reúne um conjunto exótico de exemplares da flora do território insular no contexto do seu ambiente natural. Tianyi Yu atenta no enxame de bagas azuis em destaque na composição. As pequenas bagas, ao contrário dos restantes elementos constantes no quadro, não haviam sido identificadas. Tianyi lança-se numa busca na imensa coleção do mundo vegetal de Kew Garden. Dos confins do herbário emerge a Psychotria colhida em 1973 na floresta de Matang. Em março de 2021, o jovem estudante de mestrado está em condições de anunciar ao mundo uma nova espécie de Rubiaceae. A precisão das cores das bagas da planta arbustiva representada em Curious Plants from the Forest of Matang coincidia com o exemplar colhido nos anos de 1970. A parente do café encontrava-se entre as 14 novas espécies de arbustos tropicais selvagens de frutos azuis brilhantes identificadas por Tianyi Yu, como refere um artigo no site do Kew Gardens, assinado por Martin Cheek e datado de 21 de março de 2021. A Psychotria era então rebatizada como Chassalia Northiana. A sua designação científica carrega um tributo à mulher do período vitoriano que, através da pintura, ajudou botânicos do século XXI a identificar novas espécies nos ecossistemas ameaçados do Bornéu..Marianne North, inglesa, bióloga amadora e artista plástica, nascida em 1830, tem há perto de 150 anos um lugar cativo em Kew Gardens. A instituição é a guardiã de 838 pinturas a óleo assinadas pela mulher que, sem educação artística formal, retratou uma parte do mundo vegetal tal como ele se apresentava no século XIX. Não o fez no remanso de um estúdio britânico. Ao longo de mais de duas décadas, entre os anos de 60 e 80 da centúria de 1800, Marianne trilhou centenas de milhares de quilómetros do planeta, das selvas tropicais do Brasil, às da ilha de Java; das florestas norte-americanas, aos confins australianos. Marianne North privou com figuras como o botânico e naturalista Joseph Dalton Hooker, diretor dos Reais Jardins Botânicos, Frederic Edwin Church, um dos maiores pintores de paisagens norte-americanos e mereceu o louvor de uma figura com um peso maior na ciência, a do naturalista Charles Darwin (a este propósito visite-se o site Darwin Correspondence Project e leia-se a carta que este endereça a Marianne)..Para Marianne North a pintura como profissão de fé começou aos 40 anos, após a perda do seu amado pai, Frederick North, com quem encetara inúmeras viagens pela Europa. Através dos contactos de amizade do progenitor, a jovem Marianne conhecera Joseph Hooker, explorador com participações na expedição de 1839 a 1843 de James Clark Ross à Antártida e uma viagem aos Himalaias e Índia de 1847 a 1851. Hooker apresentou a Marianne os fascínios de Kew Garden. Ali, a aspirante a pintora assistiu à teatral floração de uma Amherstia nobilis, a primeira a ocorrer nas Ilhas Britânicas. Em 1869, inicia-se o afã de pintura de North, primeiro numa viagem à Sicília, para depois, em 1871 e 1872, enveredar nos caminhos que a levaram ao Canadá e aos Estados Unidos. E, não mais para. Segue-se no roteiro da pintora à Jamaica e um ano nas florestas brasileiras. A inglesa retrata as plantas no seu ambiente natural, indicador precioso para o trabalho de botânicos e biólogos. Ao representar os espécimes no seu contexto, numa profusão de elementos e de cor, Marianne contraria os ditames da época que apontavam outros caminhos para a ilustração científica. A arte botânica do período vitoriano impunha pintura a aguarela sobre fundo claro..Em 1875, após alguns meses em Tenerife, North inicia uma viagem ao redor do mundo, com início na Califórnia, onde a choca o abate das florestas de sequoias, depois o Japão, Bornéu, Java, Ceilão (atual Sri Lanka) e a Índia. Em todas estas paragens Marianne pinta com afinco e compila uma obra com centenas de representações do mundo vegetal. O mesmo Bornéu que deu à arte e à ciência Curious Plants from the Forest of Matang, prestaria tributo a um outro achado para a botânica com a assinatura da pintora inglesa. Na sua permanência na mítica ilha asiática, chega às mãos de Marianne um exemplar de planta carnívora endémica. A agora identificada Nepenthes northiana, planta trepadeira cujo caule pode atingir os 10 metros de comprimento e o jarro (carrasco para os insetos) os 40 cm de comprimento, foi pela primeira vez avistada e pintada por olhos europeus, os de Marianne que a pintou. Em si, a identificação e recolha das sementes da Nepenthes northiana ocuparia uma outra história, a da aventura do botânico inglês Charles Curtis para localizar, recolher e carregar até ao "velho continente" sementes da exuberante planta. Esta ganharia lugar nos catálogos botânicos em 1881, nomeada então pelo nosso já conhecido Joseph Hooker..Dois anos antes, em 1879, Marianne oferece-se para doar a sua extensa coleção à guarda de Kew Gardens. O projeto concretiza-se em 1882 com a abertura da galeria, ainda hoje um dos polos de visita daquele espaço londrino. Entretanto, as viagens de North manter-se-iam a bom ritmo. Em 1880, sob sugestão de Charles Darwin, a pintora visita a Austrália e a Nova Zelândia. Em 1883, pinta na África do Sul e nos dois anos seguintes nas Seychelles e no Chile. Em meados da década de 1880, Marianne North abranda o ritmo das suas viagens. A sua condição física não as permite. Morre em Alderley, localidade no sudoeste inglês, a 30 de agosto de 1890. Várias espécies de plantas foram nomeadas em sua homenagem, entre outras, a Areca northiana, Crinum northianum e Kniphofia northiae..Mais recentemente, um estudo interdisciplinar que envolveu o Hamilton Kerr Institute, de Cambridge, procurou determinar os meandros da pintura de Marianne North. Amostras de tinta com a dimensão da cabeça de um alfinete foram recolhidas de 43 das suas pinturas e analisadas ao microscópio como cortes transversais. O método permitiu avaliar as camadas de tinta aplicadas sobre o papel. Marianne pintava com uma paleta de cores limitada, o que suporia a mistura de tons antes de os aplicar na superfície, muitas vezes com tinta húmida sobre papel húmido, raramente sobrepondo mais do que duas camadas. Num registo diferente das suas camadas de tinta, Marianne North deixou para as letras um testemunho do seu périplo mundial. Recollections of a Happy Life, editado postumamente em 1894 é uma vivida descrição de uma parte do nosso mundo de oitocentos. O leitor curioso encontra a obra na integra online..dnot@dn.pt