Da Mariana do passado, criança, extrovertida, aventureira, excelente aluna, bailarina, praticante de ballet e já com o gostinho pela pintura, à Mariana do presente, mulher, adulta e tetraplégica, há 18 anos de diferença. O corte ocorreu a 12 de março de 2004, "o dia fatídico do acidente, um atropelamento", contextualiza a mãe, Felicidade Teixeira, de 60 anos, que remata de imediato: "Mas o importante é que a Mariana está cá. E para nós, pais, é uma felicidade imensa termos cá a nossa filha, num registo diferente, é certo, mas é a nossa Mariana.".Felicidade fala com o DN sentada na sala da sua casa onde não passa despercebido o antes e o depois da Mariana. Uma foto de criança vestida de bailarina, tirada pouco tempo antes do acidente remete-nos para o olhar destemido e aventureiro que a mãe já tinha descrito, tal como a natureza morta, bem desenhada em traço infantil, numa das paredes, nos transporta para o tal gostinho pela pintura desde pequena..E é este que hoje tem marca em toda a casa, já que os quadros da primeira exposição da Mariana - como artista plástica, como profissional das artes, aberta ao público até há pouco tempo, na Galeria 1, em Évora, que contou com o apoio da Direção Regional da Cultura do Alentejo, e cujo mote era "Até ao Ar Livre" - compõem as paredes desde a entrada aos quartos até à sala..Por agora, é ali que ficam. "Não queremos vender, é um trabalho muito nosso, de todos, com que queremos ficar, mas se ela algum dia quiser vender algum dos seus quadros será feita a sua vontade", argumenta Felicidade..Mãe e cuidadora a 100%, assume que o percurso nestes 18 anos foram "de luta permanente", pelos cuidados, pelo desenvolvimento, pela integração no ensino regular, pela socialização e pela inclusão. Não basta o que está no papel, nas leis, nas diretivas, nas orientações, se depois, na prática, há escolas que "não aceitam estes meninos com a desculpa de que não têm elevadores para eles se deslocarem ou que nas salas não há lugar para as cadeiras de rodas", desabafa.."Cheguei a dizer numa escola, que se era por causa do elevador que não a aceitavam que eu a levava ao colo. E foi o que fiz para ela poder frequentar as aulas, mas ao mesmo tempo contactei a direção regional de educação, o ministério e tanta gente, até que acabaram por colocar um elevador na escola para a Mariana"..Estes tempos tiveram "dias muito duros, para nós e para ela, difíceis mesmo", mas trouxeram também grandes mudanças. Desde logo porque após o acidente tiveram de se mudar de Chaves, cidade onde viviam, para Lisboa, onde Mariana esteve internada sete meses em Alcoitão a recuperar e onde, de facto, "existiam os cuidados apropriados para ela, porque tinha de ser acompanhada em muitos hospitais"..Mas não ficaram por aqui. Assim que perceberam que "ela estava a estagnar, que não evoluía, começámos a pesquisar o que se fazia em termos de cuidados noutros países". E quanto mais lhes diziam para aceitarem a filha que tinham, Felicidade e o marido não se resignaram. Continuaram a lutar, a investigar e descobriram que em Cuba havia um instituto com técnicas que poderiam fazer a diferença. Foi para lá que a levaram, por dois períodos, em 2005 e 2006.."A Mariana foi para lá de avião, deitada, porque não se conseguia sentar nem endireitar a cabeça, não emitia qualquer tipo de verbalização e, veio de lá, ao fim do primeiro período, com controlo de cabeça e a emitir sons que permitiam responder 'sim' e 'não', o que facilitava a comunicação básica, mas muito importante para o dia a dia". Por isso, regressaram para mais um período, mas as despesas tornaram-se incomportáveis e voltaram a Portugal com o objectivo de aplicar a mesma abordagem intensiva com terapeutas portugueses. Desde então, Mariana nunca mais parou a fisioterapia intensiva numa clínica em Paço de Arcos com terapeutas nacionais, e também com evidentes resultados positivos. "Temos a mesma terapeuta há mais de 10 anos", confirma a mãe..Felicidade e o marido sabiam que tinham um percurso a fazer, pela Mariana, e que o vão continuar até ela querer, porque o importante é ver que "ela está feliz, que está aqui connosco e que desfruta da casa que tem", porque está toda adaptada à sua condição. Aliás, começou por ser a casa da Mariana, mas, hoje, já é a casa de todos. E e ela é feliz a fazer o que está a fazer.."A Mariana é feliz a pintar", afirma a mãe com certezas. "Isso nota-se na reação dela". Por isso, faz questão de nos sublinhar, "foram tempos muito duros", mas "também de muita aprendizagem". "Tenho aprendido mais com esta Mariana do que aprendi com a Mariana do passado", afirma, não se importando de o assumir. "É certo que a Mariana do passado era uma criança, que queria descobrir o mundo, mas já com características fortes, ideias fixas (ri-se), meiga, amiga, excelente aluna, mas a Mariana do presente dá-nos um amor incondicional"..Mariana frequenta a CERCICA - Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais - há dez anos, levou tempo a deixar convencer-se a entrar no Atelier de Artes Plásticas e a experimentar o trabalho que ali se faz, mas um dia aceitou. "Ela não queria voltar a pintar, sabia que não poderia fazer o que já fazia antes do acidente, mas foi graças à paciência e resiliência da professora Daniela, que é uma pessoa talhada para estas crianças e uma pessoa linda, por dentro e por fora, que a Mariana decidiu experimentar", conta a mãe..Daniela Gomes, designer de comunicação, professora, dava aulas no ensino regular, mas um dia teve a possibilidade de dar aulas na CERCICA e não mais saiu, já lá vão quase 22 anos, apaixonou-se "pelo trabalho, pela missão, que exige o estar sempre presente". É assim com a Mariana como com qualquer outro aluno. "É um trabalho que tem de ser de um para um (um professor para um aluno) ou de dois para um (professor e vigilante) para aluno", mas compensa..A professora, ou técnica superior em termos de carreira na instituição, recorda que foram precisos mais de três anos para construir uma relação com a Mariana, para que passassem dos "olás" e da conversa nos corredores para o atelier. Mesmo assim, tem plena consciência de que, no início, "ela não gostava muito. Estava aqui mas sentíamos que o que fazia não a satisfazia", explicando: "Ela tem limitações motoras, não tinha um ritmo de movimentos, e achámos que os trabalhos muito grandes poderiam ser frustrantes. E começámos por trabalhar dimensões mais reduzidas, mas percebemos que ela não se interessava. Um dia decidimos experimentar telas maiores para vermos como reagia e o seu interesse foi instantâneo. Em grande escala a pincelada ganhou força e expressão e toda a dimensão do que é hoje a Mariana veio ao de cima. Explodiu", afirma a professora satisfeita e com orgulho desmedido. Hoje, notam até "uma diferença na capacidade de conseguir agarrar o pincel"..Daniela e Carlos Teixeira, vigilante, recordam que foi entre 2018 e 2019 que fizeram esta descoberta e que, em 2020, na altura da pandemia, surgiam os primeiros quadros dos 11 que integraram a coleção da exposição "Até ao Ar Livre". "A partir do momento que ela se começou a projetar em grande, parece que tudo fez sentido para ela e houve uma mudança imediata na sua atitude". E não mais parou, continuando a aperfeiçoar os seus processos, como a seleção das cores, que todos perceberam que era um fator importante para ela e que Daniela Silva, a terapeuta da fala, conseguiu traduzir. Já dizem que esta Daniela tem ouvidos mágicos, porque entende a Mariana na perfeição, mas isso "é o meu trabalho. É tornar eficaz a comunicação dela com as outras pessoas", comenta a própria..Sentada na cadeira de rodas à mesa no atelier, Mariana está atenta à conversa, ri-se e mexe os lábios. Está pronta para mostrar a obra em curso e como a constrói, mas o dia é de muita excitação e está um pouco tímida. Daniela, a professora, puxa por ela. "Mariana, conta-nos. Não gostavas muito deste trabalho no início, pois não?". Mariana, que a 2 de janeiro fará 27 anos, discorda em tom muito baixinho, diz mesmo que gostava.."Porque estás a falar tão baixinho hoje? O que se passa? Estás com vergonha?", pergunta ainda a professora. Mas a outra Daniela, a terapeuta da fala, esclarece que o tom e a pouca vivacidade daquela manhã têm a ver com a falta de rotinas: "Ela regressou há pouco tempo de férias e ainda não entrou na rotina. Além disso, já se queixou que lhe marcámos sessões muito cedo. Começa aqui às 9:00 e o sono é fundamental". Mariana ri-se, como que anuindo ao argumento, mas mantém a testa franzida, o que Carlos diz ser sinal de "cansaço e desconforto", portanto "é melhor aguardarmos um pouco", aconselha..Quem a conhece, sabe que a pintura é muito mais do que uma (re) descoberta. A pintura é hoje a sua voz e a sua identidade. Na brochura que anuncia a sua exposição em Évora, a professora jubilada de História de Arte, Raquel Henriques da Silva, escreve mesmo que "as pinturas de Mariana interpelam-nos, fazem-nos parar e ficar a contemplá-las. A sua energia advém do que é próprio da pintura: são cores com grande variedade de tons e de timbres que, na superfície plana da tela, inventam movimentos, sugerem formas, criam ritmos, por uma espécie de labirintos felizes"..Na pintura, Mariana é livre, autónoma e com pleno poder para decidir, que tipo de tela quer, com que dimensão, que cores e até com que textura ou expressão, mas esta é a base de trabalho do atelier. "O que tentamos fazer é focarmo-nos na pessoa. Tentar perceber o que é importante para ela e o que lhe faz sentido. Nalguns casos, pode ser mais fácil, quando as pessoas são capazes de verbalizar, noutros, como no caso da Mariana, fomos um pouco por tentativa e erro, mas foi um percurso muito curioso", refere a professora Daniela Gomes..O método é simples, a pessoa e a experimentação, mas é acima de tudo, um método de respeito pelo outro. "O que é muito importante para eles. Aqui, são eles que decidem o tipo de materiais que querem utilizar no seu trabalho. Se querem trabalhar com papel, com uma tela, se querem que seja em acrílico ou a óleo, se querem fazer um trabalho mais gráfico ou não. Cada um tem a oportunidade de experimentar e de decidir o que quer fazer"..O mote já era este há 47 anos, na fundação da instituição, e mantém-se. É assim que concebem o processo de crescimento de cada pessoa, de desenvolvimento, de criatividade, de expressão e até de responsabilidade. No fundo, é assim que se faz inclusão, diferentes, mas iguais. "O processo de criação deles é dinâmico, não é uma coisa estática. E a nossa função é orientá-los. Há sempre algum apoio, mas tentamos não interferir ou interferimos o mínimo possível, porque é o interior deles que está a ser transposto para o trabalho", reforça Carlos. Daniela completa: "Esse é o princípio do nosso trabalho, por isso queremos que o atelier seja um espaço em que se sintam livres"..O atelier está a trabalhar nesta altura com 35 alunos. Naquela manhã, ao lado de Mariana, trabalhavam Osvaldo Miel, de 21 anos, e Filipe Cerqueira, de 33, ambos artistas distinguidos com o Prémio Dom Carlos, com exposições no currículo e quadros vendidos. José Jorge, ou o Zé, como o trata a professora, de 20 anos, também chegará a este patamar, agora "está a dar os primeiros passos, começou há muito pouco tempo no atelier"..José Jorge, como nos disse que gostava de ser tratado, fala baixinho. É tímido, não se importa de mostrar o rosto nem a sua mais recente obra, ainda por finalizar. Na mesa, ao seu lado, a imagem em fotografia que transpôs para o papel a carvão, uma imagem de Teerão, mas já com outras à frente, de arranha-céus, para prosseguir a fase inspirada em edifícios. "O Zé não desenha só edifícios. Ele veio para a CERCICA depois da escola obrigatória e que assim chegou mostrou interesse no atelier. Começou por desenhar carros, táxis - porque é que desenhavas táxis Zé, queres explicar?". Ele ri-se, porque "o pai era taxista", responde. "No início, desenhou carros e mais carros. O Carlos trazia-lhe carros e ele desenhava. Ficámos muito surpreendidos com o trabalho, achámos lindo, lindo. Eram incríveis", continua a professora. E o Zé ri-se. "Era muito específico nos carros que queria desenhar. Tinham de ter faróis retangulares ou de alumínio, ou então cadillacs, e comecei a arranjar-lhe esses carros, o que também começou a fortalecer a nossa relação com ele", reforça Carlos..Depois dos carros, começou a desenhar as máquinas que estavam dentro dos carros e outras, e o seu desenho geométrico aperfeiçoava-se cada vez mais. Um dia Daniela perguntou-lhe se queria dar um titulo ao trabalho e ele respondeu: "Máquinas de arranjar máquinas". "E começámos a trabalhar esta área com ele. E para não estar só a trabalhar com base em imagens pedimos ao departamento de informática que nos arranjasse uma motherboard para ele desenhar. E desenhou-a, um trabalho incrível, muito geométrico e preciso". O Zé é dos alunos que frequenta o atelier todas as tardes, pois é o que mais gosta de fazer. Hoje, como diz Daniela, "trabalha não só a criatividade como a autonomia"..Do outro lado da sala, Osvaldo procura no tablet padrões de capulanas para desenvolver a obra que começou. Daniela olha e diz-lhe: "Estou a gostar muito, digo-te já. Podes continuar". "Como é o fato de casamento?", pergunta Osvaldo. Daniela ri-se: "Eu não sei. Tu é que estiveste na Guiné". Osvaldo regressou há pouco de férias da terra onde nasceu e inspirou-se nas capulanas. "Ele usa sempre muitos elementos. É uma pintura muito africana e tem desenvolvido um trabalho excelente. É um artista, e é assim que é tratado em casa, muito responsável, muito profissional, já ganhou dois prémios, um da Câmara de Almada, que tem um prémio de criatividade para pessoas com deficiência intelectual, e o prémio Dom Carlos, que ganhou com uma peça em prata"..Osvaldo mostra-se satisfeito com os elogios e relembra que já vendeu até quadros. "Os melhores não estão cá porque foram vendidos, não é?", comenta Daniela. E quando assim é os autores recebem 50% e os outros 50% são para investir nos materiais do atelier..Ao fundo da sala, Filipe e Susana falam em inglês, uma das línguas em que gostam de se expressar. Filipe desenha-a numa capa da Time. "Estou a fazer uma série de capas da Time com pessoas normais, a primeira foi com a minha mãe. Agora é com a Susan", explica-nos, acrescentando: "Nós comunicamos em inglês desde 2019, desde que ela entrou aqui pela primeira vez. Somos amigos, temos os dois síndrome de Asperger e os interesses dela são como os meus"..Filipe Cerqueira é um artista premiado e com exposições, vai à CERCICA duas vezes por semana, mas trabalha muito em casa, e agora ainda tem a acrescentar ao seu dia a dia mais duas atividades, que faz questão de mencionar. "Estou no kickboxing às segundas-feiras à tarde e na natação. Preciso de perder peso e relaxa, muito". Daniela diz-lhe: "Filipe, lembras-te do que falei contigo sobre comprares um ipad com uma caneta para começares a tentar trabalhar o desenho digital? Então, estás a pensar nisso?". Ele responde prontamente: "Não. Acho que prefiro o papel, para pensar nos movimentos na minha cabeça e depois passar para o papel. Quero o papel"..A resposta estava dava. Daniela ri-se, enquanto se vira para Osvaldo: "Não estás a fazer compras por ipad, pois não?". Ele tapa a cara: "Não". E ri-se. Hoje, na sala estão todos um pouco desconcentrados. Mariana está mais interessada em ouvir as conversas com os colegas do que em trabalhar, mas como ela própria já confidenciou que "agora é uma profissional e não tem tempo a perder". Trabalha uma tela acrílica com mais de dois metros. "Vamos variando a escala, não há nenhuma intencionalidade. É uma questão de lhe perguntarmos o que quer trabalhar e em que formato". Aliás, como destacam todos, "a base do nosso é eles sentirem que há respeito pelo outro. Perguntamos e eles decidem, pedimos autorização para mexer nos seus trabalhos para contar algo, etc"..Daniela e Carlos mostram o último trabalho de Mariana, demonstrando como é feita a seleção das cores. "Como ela não consegue verbalizar bem as cores que quer tivemos de arranjar outro método que facilitasse a comunicação. Ela dizia "Verrrr" e não sabíamos se era verde ou vermelho, claro ou escuro e percebemos que isso era importante para ela. Então, perguntámos-lhe se ela conseguia dar gestos com a mão para claro e escuro e qual era o mais funcional. E ela disse que sim", explica a terapeuta da fala..Mariana demonstra de imediato com a mão para cima e para baixo conforme quer claro ou escuro. "Há uma coisa muito boa. Todos nós conseguimos trabalhar em equipa. No caso da Mariana há muitas questões a nível motor e pedimos ajuda aos fisioterapeutas, para sabermos como é que ela podia ter mais amplitude no movimento, e eles ajudaram-nos sempre. É o mesmo com a fala e com a comunicação, o que é fundamental". Depois dos gestos, arranjaram uma vara com a qual ela aponta a cor que pretende, de entre os verdes claros e os beges. "Queres a almofada? Pode ser mais fácil para o gesto", diz Carlos. Ela aceita..Na sala, o ruído de fundo é a música, jazz, outras vezes clássica ou outros ritmos. "Eles gostam e procuramos dar-lhes estilos que possam não ter acesso em casa", explicam-nos. Filipe termina o desenho de Susana, ou melhor Susan, e ela sai para o almoço. "Ai que gira, que bonita capa da Time. A Susana está fabulosa?", comenta Daniela. "O que achas Susana? Filipe, tens alguma sugestão de título? Podes conversar com a Susana sobre isso"..Mariana prepara-se para os movimentos. Carlos pergunta-lhe o que quer para a textura, ela pede tintas mais espessas. "O nosso trabalho também é este: estar completamente disponível", mas também é o saber aguardar, porque "ela tem de ter o ritmo dela, parar para respirar". Mariana olha para a câmara, posa para a fotografia. "Sua vaidosa, és muito vaidosa", riem-se todos. Ela também. E quando perguntamos quando sabem que os trabalhos estão finalizados respondem: "Essa decisão é deles. São eles que nos dizem. No caso da Mariana, ela é muito determinada. Faz pressão na mesa e diz que está terminado e ri-se sempre quando acaba um trabalho, é sinal de que ficou satisfeita, mas já vai ver". Quando Daniela e Carlos lhe mostram o resultado daquele dia, Mariana ri-se, mas não está completo. Outro dia terminará..As manhãs e as tardes no atelier vão sendo feitas de pontes, entre quem orienta e quem executa, sempre com muito cuidado, "faz parte da relação enquanto pessoas", dizem-nos. Vão-se fazendo também de expectativas, e estas não podem ser baixas, porque, no caso das pessoas com deficiência intelectual, as pessoas têm medo, as próprias famílias acham que talvez eles não conseguiam fazer determinados trabalhados e que se o tentam pode resultar numa frustração, mas, ali, o trabalho é dar largas às expectativas, tentando descobrir o que as faz feliz.."Numa pessoa como a Mariana, a pintura não é a primeira coisa em que se pensa que ela pode desenvolver um trabalho, tendo em conta as suas características do ponto de vista motor. No entanto, é preciso insistir e ser perseverante, porque muitas vezes descobrimos coisas que não esperávamos. "Às vezes, as expectativas são baixas e isso é o que não podemos ter, porque depois eles mostram-nos que não é assim. Ou seja, a condição não é necessariamente um impedimento para que uma pessoa possa desenvolver um trabalho consistente, que é o que está a acontecer com a Mariana"..Há 18 anos ou menos, muitos dos que acompanhavam a Mariana não imaginariam que "ela seria a primeira criança a estar na praia do Tamariz em cadeira de rodas e toda contente" ou que seria uma artista plástica com futuro. Os pais nunca desistiram e no atelier também não. O futuro, como diz a mãe, está para chegar e, agora, "aproveitamos o que ela está a viver, mas sempre com a expectativa de diariamente possa haver uma evolução". Por isso, o único conselho que dá a outros como ela "é que nunca desistam, nunca esqueçam que em primeiro lugar estão os nosso filhos"..O lema foi sempre "a pessoa", desde que nasceu em março de 1976. O objetivo "dar resposta às necessidades educativas de crianças e jovens com deficiência intelectual e incapacidades". E a vontade de criar o projeto de um grupo de pais, técnicos e outras pessoas interessadas nesta área. Foi assim que nasceu a CERCICA, Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais, uma Instituição de Solidariedade Social, com caráter complementar, na educação e reabilitação social.."Sou psicóloga. Estou cá há 47 anos, desde a fundação, e a mensagem passada aos técnicos foi sempre a de que não temos de ter expectativas baixas. Quem entra na instituição experimenta várias coisas e depois vamos desenvolvendo as capacidades de cada através do que mais gostam", explica Rosa Neto, a diretora-geral da instituição.."É por isso que temos tantos ateliers, para que eles experimentem, eles merecem", pormenorizando: "São pessoas com dificuldades em se expressar ou nós com dificuldade em entendê-los sobre o que gostam e não há nada como experimentarem várias atividades". E não esconde: "É por isso que este ensino é caro. Não é barato. Tentamos dar o melhor que temos a estes jovens. Não só a nível de profissionais, como de atividades e materiais"..Segundo Rosa Neto, "não temos mais capacidade a nível de acordos com a Segurança Social. As vagas estão cheias", mas projetos não faltam e para o próximo ano está previsto abrirem "um centro de artes na comunidade. Já temos o modelo que queremos para o seu funcionamento, embora depois ainda tenhamos de definir a sua operacionalização, mas o objetivo é fazer com que alguns jovens nossos estejam lá a trabalhar para que a comunidade conheça o trabalho que fazem e possam interagir. O centro ficará na Parede, em frente à estação de serviços", explica. se tudo isto é possível, diz "é porque temos uma câmara excecional, que percebeu a nossa dinâmica e nos ofereceu duas lojas para o centro de artes".. Aliás, sublinha, "muito do que conseguimos fazer aqui fazer é porque temos uma excelente parceira com câmara que complementa, muitas vezes, o que o estado não dá. O Estado ajuda as famílias a pagar a mensalidade, mas há muitas famílias que não a conseguem pagar e não é por isso que não as aceitamos. Todas têm o direito a estar aqui, independentemente de os pais terem ou não dinheiro, só têm de ser residentes no concelho, e a câmara comparticipa muitos projetos".. Após estes 47 anos a trabalhar na capacitação e na inclusão a instituição considerou que é tempo de "trabalhar mais com a comunidade. É preciso levar a nossa atividade para fora de muros da CERCICA", destaca Rosa Neto. Neste tempo perceberam também que "nada se faz por decreto, faz-se porque consideramos importante e porque o que é importante tem de ser feito com convicção e com o coração, mas respeitando os direitos deles. A inclusão só é feita assim"..RETRATO .Utentes - A CERCICA tem neste momento 1410 utentes, embora a sua capacidade seja para 2034, mas como diz a diretora-geral da instituição as vagas com acordo da segurança social estão lotadas e nem todas as famílias podem pagar este ensino..Ateliers -Ao todo, existem 16 salas no Centro de Atividades e Capacitação para a Inclusão (CACI) no Livramento e em São Domingos de Rana, com cerca de 170 utentes, para várias atividades, desde ateliers ocupacionais aos ateliers de oficina, que envolvem a área têxtil, artes - azulejaria, pintura e cerâmica - artes decorativas, jardinagem, expressão plástica, manutenção, limpezas, etc. E ainda cinco salas para utentes com perfil de necessidades de atividades terapêuticas..Funcionários - A CERCICA conta com 235 funcionários entre psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas da fala professores, educadores e muitos outros.