Málaga em português suave

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No parque de estacionamento do Estádio La Rosaleda, em Málaga, costuma estar um automóvel que chama a atenção. É um Pagani Zonda, um carro construído de forma artesanal e que custa um milhão de euros. Parece um bólide de Fórmula 1. Os jogadores chamam-lhe o «carro do Batman» pela irreverência estética e pela potência do motor, capaz de atingir a velocidade de trezentos quilómetros por hora.

Não é pouco vulgar carros de luxo estarem associados ao mundo do futebol. Mas este é excessivo. Só mesmo um magnata como Abdullah ben Nasser Al-Thani, membro da família real do Qatar, o poderia ter. No início do Verão, Al-Thani juntou aos seus caprichos com carros de alta velocidade e cavalos puro-sangue o espanhol Málaga Clube de Futebol, por 36 milhões de euros. Juntou-o aos negócios em cerca de trinta países e um império em redes de hotéis, centros comerciais, empresas telefónicas e uma participação no Doha Bank.

Além da engenharia financeira de uma administração árabe o Málaga tem outra costela internacional: é o clube mais português da Liga espanhola. O treinador é português, Jesualdo Ferreira, tricampeão nacional pelo FC Porto. Os adjuntos são portugueses: José Gomes, Nuno Espírito Santo e Rui Silva ajudam a formar o núcleo duro no trabalho de campo e na organização da equipa. E quatro jogadores são portugueses: o defesa Hélder Rosário, os médios Duda e Eliseu e o avançado Edinho são os homens encarregados de brilhar no relvado. Nem o Real Madrid, a milionária constelação de estrelas na qual pontificam José Mourinho e Cristiano Ronaldo, tem tantos representantes lusos.

O clube está sediado na segunda cidade da região de Andaluzia, o quinto maior burgo de Espanha com uma população de 560 mil habitantes, mas no qual, por causa do turismo, se vêem nas ruas quase só alemães, holandeses e italianos atraídos pelas praias de areia escura e de água azul-clara. Prédios altos com varandas rasgadas, com toldos às riscas, compõem o cenário urbano.

O Málaga CF é gerido por um magnata árabe mas as normas de funcionamento da equipa subscrevem os mesmos códigos de conduta das grandes instituições do futebol português. O que está a gerar alguma estranheza e incómodo junto dos jornalistas locais, pouco habituados a regras tão rígidas. No fundo, o departamento de futebol tem o modus operandi que lhe imprimiu Jesualdo Ferreira. Os treinos são fechados, os contactos dos jogadores com a imprensa muito reduzidos e o treinador só fala uma vez por semana. «O clube estava excessivamente exposto e havia necessidade de torná-lo mais forte», explica o adjunto José Gomes. Até havia rumores de que os jornalistas jogavam PlayStation nos quartos dos atletas durante os estágios. Agora, as mensagens para o exterior são pensadas e procuram atingir determinados objectivos, à boa imagem do que é a política de comunicação do FC Porto, do Benfica e do Sporting.

Almoços em família no estádio
Muito mudou no Málaga desde a chegada dos portugueses. Quando começou a pré-temporada, os jogadores foram informados de que teriam de tomar o pequeno-almoço e almoçar no estádio. «Assim existe a garantia de que se alimentam correctamente e de acordo com um programa traçado pelo nutricionista», adianta José Gomes. Jesualdo Ferreira esteve indisponível para a reportagem da NS’. Essa alteração teve consequências directas nas rotinas diárias do plantel, obrigado a chegar muito mais cedo ao treino e a abandonar as instalações bem depois da hora programada.

O Estádio La Rosaleda, com capacidade para trinta mil espectadores, está em obras. Há funcionários a pintar paredes, ouvem-se ruidosos martelos pneumáticos a triturar o cimento e vêem-se andaimes no pátio de acesso ao departamento de futebol. Os balneários, a sala de recuperação física e os gabinetes estão a ser remodelados, para cumprirem as exigências de uma equipa de alto nível: os novos donos não se fizeram rogados perante as exigências da nova equipa técnica.

O relvado foi substituído e o Estádio Cidade de Málaga, propriedade do município local e onde decorrem muitos treinos ao final da tarde, foi melhorado porque só estava preparado para receber provas de atletismo: «Um dia, quando sairmos, são essas pequenas coisas que levaremos connosco. O clube ficará com melhores condições de trabalho», resume José Gomes.
Abdullah ben Nasser Al-Thani, o dono do Málaga CF, é o homem do dinheiro, mas deixou o planeamento da equipa para Jesualdo Ferreira. «É mais do que um treinador, é uma espécie de arquitecto com a responsabilidade de construir uma estrutura sólida para fazer crescer um clube modesto», explica Jesús Ballesteros, jornalista do diário desportivo espanhol Marca.

Na linguagem do futebol é o manager, exerce a dupla função de treinador e director desportivo, à boa maneira do conceito que se aplica em Inglaterra, em que os técnicos intervêm directamente na pasta das contratações e nas linhas de orientação do clube. Essa mudança tem como objectivo a construção de bases sólidas para sustentar o crescimento da instituição, porque a memória dos adeptos ainda deixa transparecer algumas dores de alma. Na época passada, o cenário foi desolador para os indefectíveis vinte mil sócios: a equipa andou aos caídos no campeonato espanhol e só escapou da descida, à 2.ª Divisão, na última jornada.

A nova casa de Jesualdo Ferreira
Desde o início da época a viver em Málaga, o técnico português ainda não foi visto nas avenidas largas e apinhadas de trânsito que rasgam o burgo de uma ponta à outra. Também ninguém o viu a passear à beira-mar, onde o sol fustiga os turistas e um bafo quente e húmido cola-se ao corpo, até mesmo no início do Outuno. A planificação no clube obriga o técnico a passar os dias entre o campo de treinos e o gabinete do estádio. Jesualdo vive em Benalmádena, uma localidade costeira a 25 quilómetros do centro de Málaga, com vivendas de luxo e prédios pomposos, muitos deles situados em aldeamentos privados e vigiados por câmaras de segurança.

O apartamento do treinador encontra-se nessa zona paradisíaca, em Altos del Higuerón, um sofisticado complexo na parte mais alta do município onde os olhos mergulham em espaços verdejantes e perdem-se no azul sereno do Mediterrâneo. Está perto da auto-estrada, longe do alvoroço da praia e numa rua onde se destacam restaurantes para clientes de carteira recheada.

Ao lado, moram os adjuntos José Gomes, Nuno Espírito Santo e Rui Silva, numa rua íngreme e de moradias alinhadas, onde as entradas são controladas por um segurança privado. No condomínio existe ainda um clube de luxo e é aí que as famílias convivem, seja na piscina, nos cortes de ténis ou a jogar padel, um desporto argentino praticado em Espanha muito semelhante ao ténis e que serve para descomprimir das horas mais stressantes.

Jesualdo Ferreira escolheu Benalmádena como porto de abrigo por sugestão do clube e também por influência directa dos seus ajudantes de campo. Além da localidade se situar numa zona muito sossegada reúne todas as condições indispensáveis para quem tem crianças em idade escolar. Os filhos dos adjuntos já estão matriculados no colégio inglês da localidade, um estabelecimento de ensino muito conceituado e que será mais um pilar no processo de integração social. «O centro de Málaga também tem muita gente e aqui passamos completamente despercebidos. Ninguém nos conhece. A adaptação está a ser excelente, o clima é bom e os hábitos são semelhantes aos nossos», adianta Rui Silva.

Saudades do bacalhau
Os jogadores portugueses do Málaga CF, esses, vivem espalhados pela cidade e estão perfeitamente integrados nas rotinas de um país muito semelhante ao deles. Passam fins-de-semana juntos quando o campeonato pára e também jogam padel nos condomínios privados para descarregar o nervoso miudinho do futebol. Eliseu, Edinho e Hélder Rosário moram perto do mar, a poucos quilómetros do Estádio La Rosaleda, enquanto Duda, o mais mediático dos futebolistas lusos e que se encontra em Madrid a recuperar de uma intervenção cirúrgica, assentou arraiais em Rincón de la Victoria, uma tranquila zona marítima a dez quilómetros do centro.

É o futebolista estrangeiro mais familiarizado com os usos e costumes locais, vive em Espanha  há 11 anos, está casado com uma andaluza e expressa-se num espanhol perfeito por força das raízes já estabelecidas.

Os outros compatriotas misturam as duas línguas quase por instinto. Dizem «cerca» em vez de «perto», «rodilla» em vez de «joelho» ou «calle» quando se referem a «rua». «Mesmo quando estou a falar com os meus filhos, é inevitável dizer uma palavra em espanhol», conta o médio Eliseu, que regista a segunda passagem pelo clube e até recusou a oportunidade de vestir a camisola do Benfica. As palavras persuasivas de Jesualdo moveram-no.

Na intimidade do balneário, garante, «todos falam espanhol» e o treinador é o primeiro a dar o exemplo. Fá-lo com fluidez e quando tem dúvidas recorre a Nuno Espírito Santo, o tradutor de serviço pelos anos vividos como guarda-redes do Corunha, do Mérida e do Osasuna. O convívio diário com os portugueses tem influenciado a forma de falar dos jogadores estrangeiros e alguns já arriscam palavras na nossa língua. Como «bola» em vez de «balón» e outras denominações do léxico do futebol.

Apesar de o clima ser agradável e a língua permitir uma adaptação rápida, as saudades apertam nos momentos mais inesperados. Eliseu, por exemplo, vai uma vez por mês ao Algarve para encher a despensa e «comprar carne e arroz». Os outros fazem o mesmo, sobretudo, porque sentem a falta do prato português mais afamado do mundo: o bacalhau. Compram-no no outro lado da fronteira, confeccionam-no em casa e partilham-no à mesa com os colegas de equipa. Um dos amantes inveterados da culinária lusitana é o guarda-redes catalão Arnau, que até costuma passar férias no Algarve.

Edgar e Agostinho abriram as portas
Não é de agora que o Málaga CF é um bastião de portugueses. O casamento remonta aos finais da década de 1990, quando Edgar e Agostinho se transformaram em heróis locais ao ponto de ainda hoje despertarem saudades. Sem nunca terem feito grande sucesso em Portugal, em Espanha eram artistas da bola, destilavam talento nos relvados e transformaram-se em ídolos da exigente afición quando o clube subia a pulso no panorama futebolístico. Foram eles quem abriu as portas aos outros compatriotas, ao ponto de se verificar um dado muito interessante: nos últimos 12 anos, o balneário do clube teve sempre futebolistas portugueses. «O campeonato português também é financeiramente acessível, e isso ajuda muito», explica o agente FIFA português Artur Fernandes, bem relacionado com os dirigentes da instituição andaluza.

Essa tradição natural de olhar para Espanha como uma fonte inesgotável de recursos humanos sempre esteve bem vincada, mesmo antes de o treinador Jesualdo Ferreira assumir o comando da equipa. O departamento de observação tem registos audiovisuais dos jogos do campeonato português, acompanhados por análises ao perfil dos futebolistas sempre que se justifica o envio de alguém para o terreno. «Em termos de scouting, está montada uma estrutura muito boa e bem organizada», diz Rui Silva, que também assume o papel de observador das equipas adversárias. Foi essa rede de olheiros que esteve na base da contratação de alguns jogadores portugueses que deixaram uma marca indelével. Entre eles Litos, antigo capitão do Boavista, nome incontornável que a afición não esquece quando destapa o véu das recordações.

Duda é o ídolo da afición
Os adeptos do Málaga CF estão perfeitamente identificados com a política desportiva e olham para os portugueses com respeito. Na zona industrial da cidade, onde abundam armazéns e bairros sociais de aspecto degradado, fica situada a sede dos Malaka Hinchas, a claque mais radical do clube. É aí que Álvaro Ruiz lidera um grupo de novecentos jovens indefectíveis, que correm o país de uma ponta à outra e até atravessam a fronteira se for preciso. Já estiveram, por exemplo, no Estádio do Bessa quando a equipa andaluza defrontou o Boavista nas competições europeias.

Num espaço amplo que serve de bar e ponto de encontro, antes de cada jogo, ultimam-se os preparativos. Esticam-se panos gigantescos e afinam-se gargantas e bebe-se cerveja gelada para combater o calor. «Gostamos dos portugueses. Dão muita qualidade à equipa», diz Álvaro Ruiz quase aos berros, enquanto os amigos acompanham a conversa e aproveitam a oportunidade para fazer algumas perguntas sobre Jesualdo Ferreira. «Hombre, nunca tivemos um técnico com tanto currículo e estamos muito ilusionados. Podemos fazer um campeonato tranquilo», diz Ismael de La Torre, malaguenho dos quatro costados, mas fã absoluto de Paulo Futre, antiga estrela do Atlético de Madrid. «Nunca vi um jogador tão bom como ele.»

O jogador português mais venerado é o internacional Duda, dono de um pé esquerdo muito refinado, capaz de iluminar o jogo do conjunto espanhol. É tão querido que a claque lhe dedica uma música no estádio: «Que pedazo de jugador, Duda, Duda/ Regatea, centra y gol/ Duda, Duda, hey, Duda, Duda, hey, Duda, Duda, hey/ No le quitan el balon, Duda, Duda, hey, Duda, hey». Ele é o craque da equipa, a face mais visível do Málaga, o clube mais português de Espanha.

Um xeque das arábias
O xeque Abdullah ben Nasser ben Abdullah Al Ahmed Al-Thani, de 43 anos, nasceu em Doha, capital do Qatar, emirado localizado no Nordeste da Península Arábica, junto ao golfo Pérsico. O xeque Abdullah é bisneto do fundador da dinastia Al-Thani, reinante no Qatar, e primo do actual emir, Hamid ben Khalifa Al-Thani. Homem de negócios com interesses em três dezenas de países, sucedeu ao pai, em 1990, na presidência da empresa Nasser bin Abdullah and Sons Company, e, já este ano, tornou-se membro do conselho de administração do Banco de Doha. Os seus investimentos incluem os sectores financeiro e imobiliário, com destaque para a hotelaria e centros comerciais, e as telecomunicações. Multimilionário, é conhecido o seu gosto por cavalos de corrida (é dirigente da Federação Equestre do Qatar) e carros desportivos. Além do futebol, claro...

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