Lamentava o fim das oliveiras mas bebeu ali um 'ranhoso'

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"Casaram-nos novamente", ironizava o escritor ao perceber que as ruas José Saramago e Pilar del Río se cruzavam ali na Azinhaga do Ribatejo, recorda Ana Hughes, a responsável pela casa da Fundação Saramago. No primeiro andar daquele edifício (que já foi Registo Civil, calabouço, leitaria) estão expostos objectos que remetem para a infância do romancista, da arca das favas (forrada com páginas do jornal O Século a noticiar o doutoramento honoris causa de Franco pela Universidade de Coimbra) à cama de ferro onde ele dormia em casa dos avós e que foi adquirida a um particular pela junta de freguesia.

Mas para acertar com os tons de rosa, verde e amarelo foi preciso pintar três vezes aquela cama, recorda, entre exemplos de "conversas afáveis", Avelino Bento, então tesoureiro da junta de freguesia, à conversa no café Borda d'Água, sentado numa das mesas onde também seguem a transmissão televisiva da chegada a Lisboa do corpo do romancista Isabel Luz, Ana Luísa Duarte e outras amigas. Afinal, todas passaram mais de uma hora na fila do pavilhão da antiga fábrica de concentrado de tomate para obterem o autógrafo nos seus exemplares de As Pequenas Memórias, que Saramago fez questão de lançar na Azinhaga do Ribatejo. Aquela parte da localidade, onde ficam os bairros novos, a junta e a Biblioteca José Saramago, antigamente era um dos olivais de que o escritor sentia falta ao regressar à terra das suas férias da infância.

"Diz quem é que vai para junto do Jesus?", pergunta Ana Cristina à filha de dois anos. "O Saramago", repete logo, alargando as suas bochechas risonhas a pequena Letícia. No bar Tertúlia, onde a emissão também está sintonizada num canal de televisão que emite a chegada dos restos mortais do Nobel, senta-se Susana Rodrigues, prima em segundo grau de José Saramago, mas que apenas o viu uma vez. Afinal, repete muita gente, quando o escritor ali ia (para comemorar o seu 85.º aniversário, inaugurar a biblioteca, a fundação, a rua ou a estátua com o seu nome), "o povo [noutras vozes, "os amigos", "o protocolo"] rodeava-o", "tudo ao monte, a querer cumprimentá-lo". Isabel Feijão, quando estava com o lenço vermelho de ceifeira que usa no Rancho dos Campinos da Azinhaga, essa andou à volta do escritor quando dançaram, em sua honra, o Bailarico da Borda d'Água - e, também, a moda do Verde Gaio da Azinhaga, cujo refrão diz: "Onde chegam os campinos, bate a terra e treme o chão".

Na Taberna Central, que fica do outro lado do Largo da Praça, José Maria Gião diz-se "orgulhoso por ter visto referências ao Nobel e a Azinhaga em vários países" que visitou, da Inglaterra ao Egipto. E até se lembra de, numa ocasião, o escritor ali ter entrado com Pilar, acabando por beber um "ranhoso", que é o nome que se dá a um copo pequeno com vinho tinto. A maioria dos clientes do estabelecimento, onde a televisão está a transmitir o jogo de futebol Holanda-Japão, senta-se na esplanada, voltada para a escultura feita por Armindo Ferreira. E quase todos se lembram da piada do próprio Saramago, que dizia, quando a estátua foi inaugurada, esperar que, no futuro, a cabeça não ficasse toda suja com dejectos dos pássaros.

Mas, apesar da localidade estar na Rota do Vinho do Ribatejo, quando Saramago ia jantar à Taberna do Maltês, cujos donos mostram orgulhosos as fotos que tiraram ao lado de Saramago e de Pilar na sua página do Facebook, acompanhava com água os seus pratos favoritos da terra, "pois, apesar de comer pouco, saboreava sempre": couves com feijão ("a antiga sopa dos pobres"), mangusto (uma sopa regional de couves com pão) e bacalhau assado. "Estava sempre tudo bem" para aquele cliente. No final, por vezes, havia uma guerra entre o escritor e o presidente da junta de greguesia. "Ó Vítor [Guia], deixe-me pagar", dizia o romancista. "Nem pensar! Pago eu", retorquia o autarca.

E, numa espécie de síntese do que todos pensam, Gertrudes Marinho da Silva escreveu no livro de condolências da fundação, com a sua caligrafia rústica: "Eu gostava muito dele. Era um homem da terra, uma boa pessoa."

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