A vida tem destas coisas: durante anos, esteve adormecido e mais do que hibernado, mas agora todo o mundo fala dele. Com a morte da rainha Isabel e a prevista coroação de Carlos III, o assunto voltou à baila e de novo regressou a questão da sua devolução, ou não, aos antigos donos. O problema complica-se e embrulha-se pela circunstância de serem não menos do que três países - e que países! - a exigir a sua restituição, através de sucessivos e já antigos pedidos formulados, a saber, pela Índia, pelo Paquistão e pelo Afeganistão. No Guardian, apenas para dar um exemplo, saíram há pouco dois artigos sobre o tema, "Painful memories": what will the royal family do with the Koh-i-noor Diamond?", de Anita Anand, que tem um livro sobre ele, de que já iremos falar, e "The palace is dripping in diamonds, so why bring out the disputed Koh-i-noor?", de Catherine Bennett. E, entre nós, no Público do passado dia 18, Carla B. Ribeiro assinou o texto "Qual é a história do Koh-i-Noor, o diamante que a Índia não quer que Camila use na coroa?"..Trata-se, pois, de assunto candente e patente, que bem justifica que nos debrucemos sobre ele, coisa que faremos com o firme apoio de um livro estupendo, Koh-I-Noor. The History of the World"s Most Infamous Diamond, de 2017, da co-autoria de Anita Anand, de que atrás se falou, e do grande William Dalrymple, historiador, viajante, documentarista e ensaísta que muito tem escrito sobre a Índia, onde vive. Há um par de meses, saiu entre nós um dos seus livros, O Regresso de um Rei - A Batalha pelo Afeganistão (Publicações Dom Quixote, 2022), pertencente à tetralogia The Company Quartet, através da qual Dalrymple disseca a história da poderosíssima East India Company e a queda do Império Mogol..Com 105.6 carates, o Koh-i-Noor é, ainda hoje, um dos maiores diamantes do mundo (mas não o maior, atenção, que o maior é o Cullinan I, ou Estrela de África I, descoberto na África do Sul em 1905; na categoria dos não-lapidados, a palma vai para o Sérgio, um carbonado com 3.167 carates, encontrado em Lençóis, no Brasil, em 1895). Antes da descoberta das jazidas diamantíferas do Brasil, por volta de 1725, e se exceptuarmos os carbonados negros, encontrados nas montanhas do Bornéu, todos os diamantes do mundo vinham da Índia, diz-nos William Dalrymple, que acrescenta que os antigos diamantes indianos eram aluviais, achados nas margens dos rios, não extraídos através de mineração sistemática. Ou seja, era quase tudo produto da sorte, de um acaso felicíssimo que permitia que, de quando em vez, alguém tropeçasse numa pedra do tamanho de um ovo, ou maior..A cortante e brilhante presença dos diamantes indianos detecta-se já, há mais de quatro mil anos, no Antigo Egipto, onde eram usados para polir ferramentas, e, cerca de 500 a.C., há vestígios deles num amplo espaço geográfico, que ia do Médio Oriente à China. Na Índia, eram venerados como dádivas dos deuses ou sinais sobrenaturais, dotados de poderes mágicos, objectos que conferiam aos seus possuidores imensa prosperidade, vida longa, muitas mulheres, filhos sadios, férteis colheitas e até protecção contra os venenos e os maus-olhados, asseverava o Garuda Purana, texto sagrado do hinduísmo, cuja versão definitiva foi fixada no século X, e que aludia ao lendário Syamantaka, "o príncipe das pedras preciosas", adorno de Surya, o deus-sol, umas vezes figurado como um diamante, outras como um rubi..É sempre um orgulho, mas também um dó, vermos o nome de um português nestas andanças, pois se fomos precursores em muita e tanta coisa, estranho é que isso não seja mais estudado e enaltecido, como sucede no caso vertente: publicado em Goa, em 1561, o Colóquio dos Simples e das Drogas - o terceiro livro a ser impresso na Índia -, de Garcia da Orta, discorre abundantemente sobre diamantes, dos quais os maiores provinham da região de Vijayanagara; mas, enquanto os portugueses valorizavam sobretudo os diamantes lapidados e polidos, os canarins preferiam as pedras em bruto, com o boçal argumento de que, também, no campo feminino, apreciamos mais as mulheres virgens. Garcia da Orta afirmou que o maior diamante que vira tinha 140 carates, mas que ouvira falar de um com 250 carates e que, anos atrás, uma pessoa de confiança lhe confidenciara que, em Vijayanagara, tinha visto um diamante do tamanho de um ovo de galinha. Tratar-se-ia do portentoso Koh-i-Noor? Será possível que a primeira referência ao diamante da coroa britânica tenha sido feita por um português?.Não sabemos. A origem do Koh-i-Noor perde-se na noite dos tempos, não se sabe de onde ele veio, quem o descobriu, por onde passou - o que, como é óbvio, dificulta extraordinariamente o trabalho de restituição ao seu legítimo e original proprietário. As primeiras notícias que dele temos surgem com os mogóis, os quais, curiosamente, aos diamantes preferiam os rubis, "pedras vermelhas de luz", símbolos da singular luminosidade do entardecer - shafaq -, pedras que para eles tinha conotações místicas e metafísicas. Alguns príncipes mogóis, como Jahangir (1569-1627) e, sobretudo, o seu filho Khurram, futuro imperador Shah Jahan (1592-1666), eram obcecados por pedras preciosas, sonhavam em possuir as maiores jóias do mundo, a ponto de o português Frei Sebastião Manrique ter contado a história de que, quando num banquete lhe apresentaram doze lascivas bailarinas, Jahan nem sequer olhou para elas, preferindo contemplar a ofuscante luz das pedras que o seu irmão lhe oferecera e que trazia no colo... Diz-se que, no final da vida, Jahan mandou fazer, inclusive, dois pares de óculos, um com diamantes a fazer de lentes, outro com esmeraldas..O maior diamante que possuía tinha-lhe sido dado por um homem curiosíssimo, Mir Jumla, que começou a vida a vender sapatos de porta em porta até enriquecer fabulosamente e ascender ao cargo de primeiro-ministro de Golconda, que se manteve como reino independente até 1687. Sucede que, além de primeiro-ministro, Mir Jumla se envolveu, parece, com uma das mulheres do sultão de Golconda e, na iminência de ser defenestrado, ou pior ainda, passou-se para as bandas de Jahan, inimigo do sultão. Para cair nas boas graças do seu novo senhor, deu-lhe o que ele mais gostava, um diamante gigantesco, vindo das minas de Kollur, actual Karnataka. Especula-se se seria o Koh-i-Noor, mas, como sempre, não há certeza alguma..Durante o reinado de Shah Jahan, considerado a "Idade de Ouro" do Império Mogol, foi erguida uma das maravilhas do mundo, o mítico Trono do Pavão, que esmagava os diplomatas e os visitantes que o viam na sala de audiências do Forte Vermelho, em Deli, e que procurava evocar o trono de Salomão. Ao gosto mogol, as pedras mais em destaque eram rubis, mas no frontão apresentava-se o Koh-i-Noor, que ali permaneceu impante durante dois séculos. Ainda assim, o mistério continua, pois muitos asseveram que o diamante cravejado no Trono do Pavão, conhecido por "Grande Mogol", não era o Koh-i-Noor, mas outro, igualmente majestoso, o Orlov, que desde 1774 adorna o ceptro imperial de Catarina, A Grande, no culminar de uma outra história curiosa: foi adquirido em Amesterdão pelo conde Orlov, antigo amante de Catarina (e pai de um filho ilegítimo seu), que o ofereceu à imperatriz na tentativa de reacender a centelha do amor; sucede que Catarina tinha entretanto arranjado um amante novo, o príncipe Potemkine, e, por isso, aceitou o diamante, deu-lhe o nome de Orlov, mas não reatou o romance; o conde, que se arruinara para comprar a preciosa pedra, acabaria os seus dias num asilo de loucos e indigentes, enquanto o diamante Orlov, claro está, encontra-se hoje arrecadado no Kremlin..Enquanto isso, o Império Mogol entrava em declínio, minado por lutas fratricidas e infindas conspirações palacianas. Na batalha de Karnal, em Fevereiro de 1739, as tropas do iraniano Nader Shah (ou Xá) derrotaram o Exército mogol e, de seguida, saquearam Deli durante 57 dias, apoderando-se do Trono do Pavão, do Rubi de Timur, do Koh-i-Noor e do seu irmão gémeo, o Daria-e-Noor ("Mar de Luz"), que hoje faz parte do tesouro real iraniano e está depositado num cofre do Banco Central do Irão, em Teerão. Para se ter uma ideia da pilhagem de Deli pelos persas: a caravana com os despojos de guerra - oiro, prata, pedras preciosas - era composta por 700 elefantes, 4 mil camelos, 12 mil cavalos..Seja na Índia, seja na Pérsia, o Koh-i-Noor nunca trouxe felicidade aos seus donos e, com o tempo, forjou-se a superstição, que ainda hoje existe, segundo a qual ele era fatal para os homens que o possuíssem, mas não para as mulheres (é por isso que nunca os monarcas britânicos o usaram e, se for o caso, será Camila, não Carlos, a levá-lo na cabeça na próxima coroação). Mesmo que não se acredite na lenda da "maldição do Koh-i-Noor", é impressionante a devastação sucessiva a que foram sujeitos aqueles reinos e principados da Índia, do Irão, do Afeganistão, a perfídia e a crueldade dos seus governantes, a quantidade das suas conspirações e intrigas. Poder-se-ia dizer que tais príncipes e imperadores tudo fizeram uns aos outros, menos tirar olhos, mas a triste verdade é que até olhos se arrancaram:.Nader Shah, o conquistador de Deli, suspeitando que o filho mais velho lhe queria usurpar o trono, mandou matá-lo e ordenou que lhe trouxessem os seus olhos, à vista dos quais desatou em prantos, maldizendo o seu destino; mais tarde, num sangrento golpe palaciano, o eunuco Agha Muhammad depôs o neto de Nader Shah, torturando-o e matando-o com requintes de malvadez (mandou atá-lo a uma cadeira e rapar-lhe o cabelo e despejou chumbo a ferver sobre a sua cabeça), além de ter esmagado de forma brutal uma rebelião em Quermã, no sul da Pérsia: deu as mulheres e as crianças como escravos aos soldados e ordenou que estes lhe trouxessem, dentro de cestos, os olhos de todos os homens, que contou um a um, até parar nos 20 mil; em resultado disso, trinta e quarenta anos depois, ainda era frequente os viajantes encontrarem na região hordas de pedintes cegos..Estes foram só alguns episódios num longo historial de chacinas e traições, em que filhos mataram pais, e vice-versa, irmão assassinaram irmãos, houve mães assassinas e muitas matanças em massa (em 1778, quando o afegão Timur Shah reconquistou a cidade de Multan aos sikhs, trouxe milhares de cabeças de sikhs no dorso de camelos e exibiu-as durante meses como troféus de guerra)..O Koh-i-Noor acompanhou tudo isso, foi alvo de mil cobiças, andou em bolandas entre a Índia, a Pérsia e o Afeganistão do Império Durrani, o qual acabou também devorado por sucessivas guerras tribais. Houve príncipes que, antes de serem mortos, o esconderam entre as pedras das suas masmorras (como Shah Zaman, a quem cegaram com uma agulha, que "logo fez escorrer o vinho dos seus olhos", numa bárbara descrição da época), andou ocultado em turbantes, no interior de vestes de mulheres, e acabou servindo de moeda de troca: em 1809, o rei afegão Shuja Shah foi deposto e exilou-se no Punjab, onde viveu exilado com uma corte de dezenas de mulheres e concubinas e uma pensão vitalícia da East India Company (durante o tempo de exílio, e para não perder velhos e negros hábitos, continuou a mandar arrancar os narizes, as orelhas, as línguas, o pénis e os testículos de todos os cortesãos que lhe desagradavam). A troco da protecção do seu anfitrião, Ranjit Singh, o desolado Shuja Shah teve de dar, muito a custo, o Rubi de Timur e o Koh-i-Noor..O novo dono, Ranjit Singh, fundador do império dos sikhs, ciente dos perigos lendários do Koh-i-Noor, usava-o em ocasiões festivas, ora no seu turbante, ora colocado no braço, mas tinha-o guardado com mil precauções e, para prevenir ataques e ladroagens, transportava-o numa caravana de 39 elefantes, nunca se sabendo em qual deles ia (na realidade, ia sempre no dorso do primeiro paquiderme, segredo que só o tesoureiro real conhecia)..A saga continuou e, quando Ranjit Singh morreu, renasceram os problemas: o chefe dos brâmanes garantiu que, no leito de morte, o rei doara o diamante ao Templo de Jagannath, em Puri, mas o tesoureiro régio insistiu, com êxito, que o Koh-i-Noor era propriedade do Estado, não bem pessoal do monarca..A seguir, e como sempre, um vendaval de desgraças: Kharak Singh, o primogénito de Ranjit Singh, foi deposto pelo seu primeiro-ministro, Dhian Singh, e depois morto através de longo processo de envenenamento que durou 11 meses, com a saúde do monarca a ficar mais frágil a cada dia que passava. Logo a seguir, o filho de Kharak Singh morreria num misterioso acidente. O diamante passou então para o irmão do primeiro-ministro, que o deu ao imperador Sher Singh, mas, em 15 de Setembro de 1843, um golpe levou ao assassinato do imperador e do primeiro-ministro Dhian Singh. Confuso, não? No dia seguinte, um contragolpe, mais morte e perseguições, estrangulamentos misteriosos, um interminável ciclo de massacres. O Punjab mergulhara no caos e, em quatro anos, vira morrer três marajás, dois príncipes, uma rainha consorte, dezenas de aristocratas, até que tudo acabou com a entronização de uma criancinha de 5 anos, o inocente Duleep Singh..É então que os ingleses entram em cena, impondo a ordem através da força. Os sikhs, porém, eram adversários temíveis, que jamais se rendiam, preferindo deixar-se chacinar em combate. Foram necessárias duas longas guerras - de 1845 a 1846 e de 1848 a 1849 - para que a East India Company conseguisse anexar o Punjab e, nos termos do Tratado de Lahore, assinado em Março de 1849, determinou-se que o marajá deveria entregar o Koh-i-Noor à rainha Vitória..Foi um gesto simbólico e humilhante, imposto a uma criança de 11 anos, e a cupidez do então governador da Índia, o marquês de Dalhousie, seria criticada por muitos dos seus contemporâneos, inclusive na Grã-Bretanha. "Apanhei a minha lebre!", escreveu o marquês a um amigo e, na verdade, são escabrosos os pormenores da captura do diamante e do seu envio em segredo para Inglaterra. A mãe de Duleep Singh, a única que se apercebera a tempo da perfídia dos britânicos, acabaria neutralizada, encerrada num palácio distante, longe do filho, e retratada como uma ninfomaníaca promíscua, a "Messalina do Punjab", para dissipar as dúvidas da pudica rainha Vitória relativamente à forma despudorada e sórdida como o seu governador se apossara do diamante..Mais do que um símbolo de dominação colonial e do esmagamento das revoltas sikhs, o Koh-i-Noor era um trunfo pessoal do marquês de Dalhousie, governador das Índias, que ao presentear a sua monarca com aquela pedra magnífica, ofuscante, pretendeu, acima de tudo, engrandecer o seu nome. Mais ainda: sendo o Punjab um território da East India Company, não era claro que o governador tivesse sequer mandato para se apossar do Koh-i-noor e dispor dele numa operação de legalidade mais do que duvidosa..Duleep, uma alma sensível que amava os livros e a pintura, a poesia persa e a falcoaria, veio para Inglaterra, avistou-se com Vitória, que o protegeu e encaminhou na fé cristã, mas com o passar dos anos afundou-se numa vida de dissipação e luxo, a expensas do governo britânico (que, às tantas, fechou a torneira...), casou com uma jovem linda, mas semianalfabeta, Bamba Müller, filha ilegítima de um mercador alemão e de uma escrava abissínia. Depois, afundou-se no álcool, acumulou amantes e concubinas, contraiu dívidas colossais, começou a escrever incessantes cartas à rainha e aos funcionários da Casa Real nas quais exigia a devolução do diamante e do seu reino. Tentou ir para a Índia, onde sonhava armar um Exército de sikhs e reconquistar o trono, mas morreria tragicamente pelo caminho, nas raias da miséria..O diamante, esse, foi exibido na Grande Exposição de Londres, em 1851, e, sob os auspícios do príncipe Alberto, seria lapidado duas vezes nas oficinas da Garrard, os joalheiros reais, perdendo dimensão e peso, mas ganhando fulgor e brilho. Sintomaticamente, o Koh-i-Noor pesaria sempre na consciência da rainha Vitória, que, apesar de o ter exibido com frequência, montado num bracelete, confidenciou em privado os remorsos que tinha em usá-lo. Em 1902, seria colocado na coroa da rainha Alexandra, por ocasião da entronização do seu marido, o rei Eduardo VII, a seguir transferido para a coroa da rainha Maria, em 1911, e para a coroa da rainha-mãe, em 1937, a qual seria posta sobre o seu caixão aquando do seu funeral, em 2002..Logo após a independência, em 1947, a Índia reclamou a devolução da pedra, reiterando esse pedido aquando da coroação de Isabel II, em 1953. Em 1976, seria a vez do primeiro-ministro do Paquistão, Zulfikar Ali Bhutto, pedir o diamante de volta e, em 2000, o governo talibã disse que o Koh-i-Noor pertencia, isso sim, ao Afeganistão e que deveria ser devolvido "o mais cedo possível" (sic). Nesse mesmo ano, o assunto seria debatido no parlamento indiano e, por ocasião do funeral da rainha-mãe, seriam os sikhs a solicitar o diamante, controvérsia que acabaria por marcar as visitas de David Cameron à Índia, em 2010 e em 2013. Em Deli, gerou-se acesa controvérsia, com o procurador-geral do país a dizer que o Koh-i-Noor não era um objecto roubado e, como tal, pertencia legitimamente à Grã-Bretanha, e o ministério da Cultura a afirmar, em contrário, que iria envidar todos os esforços para a sua restituição..Ao longo de séculos, o Koh-i-Noor tem-se atravessado no destino dos homens, quase sempre de forma trágica. A maldição, evidentemente, não se encontra nessa pedrinha brilhante, mas na ganância daqueles que, para a possuírem, foram capazes de matar e de mentir, até de arrancar olhos. Devido à avidez humana, o Koh-i-Noor, a "Montanha de Luz", converteu-se, ao longo dos séculos, num pedaço de carvão negríssimo, tingido de dor e de sangue..Quando se conhecem os detalhes do modo como foi arrancado a uma criança e trazido para a Inglaterra - e de que aqui só fiz uma breve descrição -, torna-se óbvio, mais do que óbvio, que o Koh-i-Noor não deveria ser exibido como adorno de poder soberano, sobretudo numa monarquia constitucional de um regime democrático que se proclama defensor dos Direitos Humanos. Por razões de princípio, mas também por motivos pragmáticos, para não incendiar paixões nacionalistas na Índia de Modi e comprometer as relações com esse país, bem como para proteger a imagem da Casa Real britânica, é do mais elementar bom-senso que Camila não use um diamante tão controverso na cerimónia de coroação do marido..Parece ser também de bom-senso concluir que, por ora, não faz sentido devolver o diamante a quem quer que seja, pois são muitos os que o reclamam - a Índia, o Paquistão, o Afeganistão - e uma devolução impensada iria agudizar enormes tensões, em vez de aplacá-las, tanto mais que os religiosos do Templo de Jagannath e os sikhs do Punjab também o reclamam para si. Já se alvitrou que o melhor seria cortar o diamante em três pedaços, dividi-lo equitativamente pelos seus pretendentes, ou erguer um museu na fronteira entre a Índia e o Paquistão, com dupla entrada por cada um dos Estados. Propostas imaginosas, sem dúvida, mas que só demonstram que os problemas do passado ainda persistem e que o retorno do Koh-i-Noor à origem faria renascer a história de violência e morte que o manchou durante séculos..Assim, e por ora - e sem formular qualquer juízo global sobre a questão das devoluções pós-coloniais, matéria que não estudei e sobre a qual não tenho opinião formada -, parece avisado e prudente que o Koh-i-Noor seja conservado como peça de museu na Torre de Londres, acompanhado da devida explicação sobre a sua história e sobre o modo vil como foi parar a Inglaterra. Oxalá num futuro próximo haja condições para que os quatro países a que o diamante está ligado pela História - Índia, Paquistão, Afeganistão, mas também Reino Unido - encontrem forma de o usufruir conjuntamente, talvez em períodos alternados no tempo, através de um esquema rotativo e equitativo. Só assim o Koh-i-Noor gozará a paz que nunca teve, só assim poderá ser um factor e um símbolo de concórdia e não, como sempre foi, uma causa de violência e guerra. Nem se diga, em contrário, que o problema não está no diamante, mas no que ele representa, valores sagrados - as glórias dos Estados soberanos, o orgulho imortal das nações - e, como tais, inegociáveis. É que, se virmos o que foi a história do Koh-i-Noor, as suas sangrentas andanças ao longo de séculos, haverá assim tantos motivos de orgulho para quem quer que seja? Para a Índia, para o Paquistão, para a Inglaterra, para o Afeganistão? Em suma, se quatro países não são capazes de se entender por causa de uma pedra, então muito mal vai o mundo.. Nota - por lapso, induzido pela leitura do recente A Torre dos Segredos. Os mundos paralelos de Camões e Damião de Góis, de Edward Wilson-Lee (Bertrand, 2022), identifiquei o autor do Colóquio dos Simples e da Drogas como Damião de Góis, quando se trata, obviamente, de Garcia da Orta. Agradeço a Luís Filipe Castro Mendes ter-me chamado a atenção opara o erro, pelo qual peço desculpas aos leitores. .Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.