Justiça portuguesa. O melhor, o pior e o inadmissível

Alexandra Leitão do PS, Mónica Quintela do PSD e António Filipe do PCP juntaram-se no podcast Soberania desta semana, no qual fizeram um retrato dos principais problemas que afetam a Justiça no nosso país. Falaram também da intervenção do SIS no caso GalambaGate, com o ex-deputado comunista a afastar comparações com a PIDE. "O SIS não mata nem tortura", afirmou. Em foco, os atrasos nos tribunais administrativos e fiscais, as manobras dilatórias nos processos, o acesso à justiça e a "justa" greve dos oficiais de justiça.
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A intervenção do Serviço de Informações de Segurança (SIS) na recuperação do computador do ex-adjunto do ministro das Infraestruturas é um caso de justiça e tem enquadramento legal ou não?

A questão deu o tiro de partida no podcast Soberania, uma parceria do Diário de Notícias com o Observatório de Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), num debate onde se procurou identificar e retratar o melhor, o pior e o inadmissível na Justiça Portuguesa, com as deputadas Alexandra Leitão do PS e Mónica Quintela e o ex-deputado do PCP, António Filipe.

Oiça aqui o podcast:

Alexandra Leitão salvaguardou que a "factualidade ainda não é suficientemente conhecida para fazermos a subsunção às normas aplicáveis", mas sublinhou que , "sendo uma matéria que neste momento está mais no plano político do que propriamente no plano jurídico" desejou que houvesse "um esclarecimento cabal do que se passou". Porque "as pessoas não podem ficar com dúvidas sobre matéria atinente a direitos fundamentais, como é o papel, naturalmente, das forças de segurança em geral, e em especial dos serviços de informações".

Mónica Quintela, que já tinha alertado para o impacto especial deste caso "numa altura em que está em curso uma revisão constitucional e que está em cima da mesa uma proposta que tem a ver com o acesso dos serviços secretos aos metadados, ou seja, um reforço dos poderes das secretas", não tem dúvida de que "não há enquadramento legal para a atuação do SIS", nesse caso.

Para a deputada social-democrata "esta é uma questão estrutural" e entende que deve ser claro "o que é que permite ao governo" recorrer ao SIS e "qual é a função do SIS", recordando que "temos sempre uma má memória relativamente aos antecedentes, aquilo que foi a PIDE, e por isso todos os cuidados são poucos".

António Filipe moveu a cabeça negativamente e achou um "exagero" a comparação com a PIDE (a polícia política do Estado Novo): "não comparo, porque o SIS não prende nem tortura ninguém. Portanto, a PIDE era uma sinistra polícia e o SIS é um serviço de informações que deve atuar estritamente de acordo com a lei. É essa a questão".

Quanto à legitimidade ou não da intervenção deste serviço de informações, o deputado comunista não vê enquadramento legal. "De várias pessoas que já ouvi defender a atuação do SIS conforme com a lei, nenhuma delas ainda me conseguiu dizer qual é o artigo da lei em que se baseia. Porque acho que não há. Ao contrário, o que há é um artigo que diz que as informações não podem desenvolver ações próprias das entidades policiais. E quando me vêm dizer que aquilo não foi uma atuação policial, não sei o que é então. Quando um cidadão é abordado por um agente de um serviço de segurança que lhe diz qualquer coisa como "tem que me dar esse computador e se não for a bem, é de outra maneira", isto é o quê? Não estamos perante a história do Raul Solnado do prisioneiro que não quis vir. Ou seja, é uma atuação de natureza objetivamente policial. Porque se não, se ele recusasse, o que é que acontecia? ", questiona.

A deputada do PSD e o ex-deputado comunista coincidiram numa matéria em relação ao que consideram positivo no balanço que fazem do evolução da justiça nos oito anos de governo socialista: o combate à corrupção.

"No melhor é de saudar o pacote de combate à corrupção, que foi possível consensualizar na anterior legislatura na Assembleia da República, embora sem a amplitude que o PSD e o PS desejavam. Não tenho ideia de que reina a impunidade. Todos os dias se faz justiça nos tribunais, todos os dias são julgadas, absolvidas e condenadas pessoas. Portanto, é a justiça a funcionar", assinalou Quintela.

António Filipe, que foi deputado durante 33 anos, concordou que "tem havido uma evolução legislativa positiva, nos últimos anos", que em matéria de combate à corrupção. "Não estou nada de acordo com aquele discurso tremendista, de que isto é um país de corruptos e de que a impunidade campeia. Tudo isso é discurso, é muito fácil. E é sempre muito rendível dizer que isto é tudo uma cambada, que é preciso uma limpeza, mas é preciso não tocar com os nossos amigos. Não podemos dizer que há uma total impunidade de combate à corrupção. (...) temos ex-ministros na prisão, a cumprir penas, condenados por crimes de corrupção, temos responsáveis autárquicos que também foram visados em investigações e processos, e também com condenações, tivemos um ex-primeiro-ministro em prisão preventiva, no âmbito de um processo de corrupção, independentemente da forma como esse processo venha a finalizar, tivemos um banqueiro que foi preso. Portanto, não é justo dizer que há uma total impunidade e que não houve evolução nenhuma".

Filipe também assinalou como um elemento do "melhor" da Justiça, "alguma recuperação que se fez nos últimos anos dos efetivos da Polícia Judiciária, que bateram no fundo em 2014 e 2015, recuperação essa que o meu partido também se orgulha de ter dado uma contribuição, particularmente na legislatura de 2015-2019".

Alexandra Leitão foi mais otimista - ou não fosse o seu partido que está no governo - e destacou quatro fatores positivos: a "área dos registos e notariado. (...) há muita coisa que se faz de forma mais confortável e mais amigável com o recurso à digitalização, seja ao nível das empresas, seja ao nível dos cidadãos; uma melhoria ao nível da morosidade na justiça cível, nas pendências e nos processos findos nos tribunais de primeira instância judiciais; o reforço de meios para os órgãos de polícia criminal, e muito especial para a PJ, tal como próprio mecanismo anticorrupção; por último, muito relevante, a autonomia conferida do ponto de vista administrativo e financeiro aos conselhos superiores, terminando agora com o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, antes com o Conselho Superior de Magistratura, para fazerem eles o pagamento e a gestão do pessoal.

No que diz respeito ao pior, os três políticos coincidiram em alguns pontos. Todos estão de acordo em relação à morosidade dos processos ser das piores coisas da Justiça, com destaque para os Tribunais Administrativos e Fiscais - segundo o presidente da direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Ramos Soares, "nos Tribunais Administrativos há muitos processos, infelizmente, com 10, 15, 20 e 30 anos, que estão pendentes e nunca mais se sabe quando é que acabam".

E estão também de acordo quanto a refutar que sejam as designadas "manobras dilatórias" a principal causa do arrastamento da generalidade dos processos, com António Filipe a classificar a Operação Marquês (com quase 40 recursos por parte da defesa do ex-primeiro ministro José Sócrates) como "absolutamente atípica".

Alexandra Leitão sublinha que "as garantias de defesa são uma espinha dorsal do Estado de Direito" e que "não vamos trocar morosidade por garantias de defesa". Lembra que "uma das áreas onde há mais morosidade é nos Tribunais Administrativos e Fiscais e não é por causa das garantias de defesa dos cidadãos" e que "muitos dos atrasos em processo penal têm a ver com déficit de recursos na justiça, não ao nível dos magistrados, mas ao nível de outras coisas que atrasam os processos, como tradutores de documentos em língua estrangeira, peritos para fazer as mais diversas experiências, de natureza médica, psicológica, computadores, etc.".

A deputada socialista deixa ainda uma sugestão: "uma das coisas que eu acho que um Ministro da Justiça devia fazer no primeiro mês em que entrasse em funções, era publicitar as pendências, processos de entradas e processos findos de todos os tribunais deste país. Por tribunal, por juízo, sem indicar os números dos processos. Administrar a Justiça é um serviço público, antes de mais. Estes elementos têm a ver com o funcionamento global do sistema, e não com a decisão A, B ou C.

Mónica Quintela está de acordo em que "a celeridade não pode, de maneira nenhuma, ser o contrário de garantias de defesa" e com o problema da "morosidade dos processos criminais, pelo potencial destrutivo que têm para acabar com um cidadão, pela morte civil a que vota um cidadão, pela injustiça que é alguém que é condenado a andar anos e anos e não expiar a sua culpa e por alguém que é inocente andar a ser também visto com o labéu, com o estigma da suspeição, de ser arguido e das pessoas olharem para ele como uma pessoa que deixa de ter aquela respeitabilidade, o direito à sua reputação, ao bom nome que todos nós temos direito".

Relacionado com estas palavras de Quintela, esteve o que Alexandra Leitão escolheu como inadmissível na Justiça: "a violação sistemática, ostensiva e nem sequer investigada do segredo de Justiça".

"É verdade que a demora dos inquéritos e de investigações queimam as pessoas, mas se eles estivessem em segredo de justiça como deveriam estar, essa fogueira ardia de uma forma muito diferente. Isto é algo que nunca nenhum Ministro da Justiça soube por onde lhe pegar, e provavelmente nenhum Conselho Superior soube, porque isto não é um problema só do governo. A questão da violação sistemática, ostensiva e não investigada do segredo de Justiça, é um problema do sistema. E todos os operadores do sistema deviam trabalhar para pôr fim a isto", assevera.

A deputada socialista juntou ainda outro ponto inadmissível, que partilha com António Filipe: "o acesso à justiça, os custos da justiça, as taxas de justiça, os custos das perícias, etc. Não só o custo inicial, logo do próprio pagamento inicial da taxa de justiça inicial, como o custo de manter em tribunal um processo, às vezes durante imenso tempo".

Para o membro do Comité Central do PCP, "um dos problemas mais graves que continuamos a ter, nunca resolvido em Democracia, tem que ver com as possibilidades de as pessoas terem acesso à justiça, sem que isso signifique um sacrifício económico. (...) continuamos a ter uma justiça para ricos e continuamos a ter até denegação de justiça, num certo sentido, mais amplo, para os pobres, mas também para a classe média. Para muitos é proibitivo e, nesse sentido, continuamos a ter uma Justiça para ricos e outra para pobres, sendo que é um déficit enorme que o Estado democrático tem".

Mónica Quintela alinha com Alexandra Leitão "relativamente à questão da violação do segredo de justiça", recusando a "justiça dos pelourinhos".

Mas para esta deputada social-democrata é também inadmissível que não tenha sido concretizada "a reforma da justiça como um todo". "Acho que se impunha que os partidos se entendessem, porque é uma questão de Estado, e que fosse possível fazer uma reforma da justiça, porque tem a ver com o próprio exercício da cidadania".

A não aprovação do estatuto dos funcionários judiciais, que motiva a greve destes que dura há largas semanas, prejudicando já mais de 30 mil processos, é também classificada como "inadmissível" para António Filipe.

"Houve um esforço grande para resolver o problema dos estatutos, quer dos magistrados judiciais, quer dos magistrados do Ministério Público, que eu saúdo, agora não é admissível que não haja acordo nenhum com os funcionários judiciais, que eles continuem de governo para governo. Já vamos nisto, há vários governos, já vem do governo PSD-CDS, continuou com os governos PS, e continua sem fim à vista, e nem o suplemento de recuperação processual, cuja integração no vencimento está prometida desde o secretário de Estado da Justiça José Manuel Matos Fernandes (1995), pai do ex-ministro (do Ambiente) João Pedro Matos Fernandes, que quando José Vera Jardim era Ministro, criou esse suplemento de recuperação processual. Isto nos anos 90. Criou esse suplemento de recuperação processual com a promessa de que logo que fosse possível, ele seria integrado no vencimento para poder ser pago a 14 meses, e já passaram mais de 20 anos. Nem conto quantos governos passaram, certamente muitos, e nem isso está resolvido, muito menos a questão dos estatutos dos funcionários judiciais, e acho isso inadmissível, e compreendo perfeitamente as razões de descontentamento e de luta dos funcionários judiciais".

Alexandra Leitão considerou igualmente "justa" a revindicação dos oficiais de justiça e "urgente" que haja "uma negociação com vista a uma revisão da sua carreira, e, eventualmente, com aqueles 14 meses do tal suplemento que é o seu pedido imediato".

Lembra, porém, que a Ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro se comprometeu a medida seja integrada "numa revisão mais global" que ficará pronta até ao final deste ano.

"Preferia que tivesse sido resolvido há mais tempo. O governo funciona como um só e não sabemos internamente quais são as razões pelas quais não tem avançado, mas, pessoalmente, considero que é uma das situações que urge resolver, quer pela dimensão de justiça laboral, quer pela dimensão da consequência que tem no funcionamento dos tribunais", afiança.

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