João Garcia: saber subir, saber descer

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"Ó lá, Veloso amigo,
aquele outeiro
É melhor de descer
que de subir."

Luís de Camões,
Os Lusíadas, Canto V


O alpinista João Garcia, que deixou o nariz no Tibete, é um enorme valente e um homem extraordinário. Explico porquê: nestas coisas dos everestes, dizem, subir não é difícil, tramado mesmo é descer, vir a baixar lá dos cimos com a carne estraçalhada e a mente pior ainda. É por isso que, segundo as estatísticas, as mortes ocorrem geralmente nas descidas, como aliás sucedeu ao companheiro de Garcia na aventura de 1999, o belga Pascal Debrouwer, avistado pela última vez a cambalear no alto de uma ravina, de onde acabou por cair, parece. O corpo nunca foi encontrado, juntando-se aos mais de 25 cadáveres que para lá definham, diz-nos João Garcia no seu livro A Mais Alta Solidão. O Primeiro Português no Cume do Evereste, um best-seller de 2002, com 30 mil exemplares vendidos, e que já teve umas 14 edições, ou mais, e onde ele conta que, a dado passo da sua epopeia, chegou a passar pelo cadáver de uma americana, Fran Arsentev, morta de esgotamento poucos dias antes, que cumprimentou um inglês sentado na neve, não se apercebendo de que já estava morto, ou que viu vários corpos nas plataformas do Campo 3, a 8300m, e, mais impressionante ainda, que, ao retornar lá do cume, tombou de cansaço e adormeceu ao lado de um indiano defunto, meio enterrado na neve, encolhido em posição fetal - e caído quando descia, claro.

Estamos em crer, todavia, que existe uma outra acepção de descida, essa menos física e tangível, mais imaterial e do espírito, e, por isso mesmo, ainda mais valiosa. É ela, sobretudo ela, que faz de João Garcia um valente. Percebemo-la melhor com o exemplo de Cristo: antes de encarnar e se fazer homem, quando vivia só no pensamento do Pai, Jesus andava lá nas alturas, gozando a paz dos anjos; depois, quando decidiu descer à terra, puseram-se logo a blasfemá-lo com nomes do piorio, e a seguir açoitaram-no, pregaram-no numa cruz e mataram-no, ademais quando era novo, novíssimo, e ainda tanto tinha para dar ao nível da religião e dos seus sermões motivacionais, os quais, apesar de terem sido originalmente pensados como uma TED para auditórios hebraicos, em acesso livre, acabaram por tornar-se virais no mundo inteiro, em formato pay-per-view. Com o nome Evangelhos ou Gospels, as suas talks encontram-se hoje disponíveis em várias línguas e noutros tantos suportes: livro, em papel ou digital, áudio, vídeo, YouTube, cinema (na modalidade pastelão bíblico) e até, inclusive, fichas de resumos e explicações gratuitas aos domingos, dadas por profissionais especializados. Dizer que Jesus Cristo foi o primeiro coach ou influencer da História talvez seja um exagero, pois antes dele houve grandes talentões da oratória inspiracional, como Buda, por exemplo, mas não há dúvidas de que Cristo inovou muito na matéria, sobretudo com aqueles fabulosos milagres e aquelas ressurreições d"arrasar, que ainda hoje, volvidos mais de dois mil anos, continuam a funcionar muitíssimo bem junto no segmento sénior das classes B2 e C1.

Entre as suas palestras mais famosas, um clássico instantâneo, o Sermão da Montanha, assim chamado por mera imposição do marketing, já que o original fala tão-só de um monte ("Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte", Mateus, 5:1) e até que Jesus não subiu, mas desceu, a um "lugar plano" (Lucas 6:17). Figurar Nosso Senhor como um montanhista, aparelhado de crampons nas sandálias ou com o cajado nas vezes de um piolet, será uma imagem tentadora, irresistível, mas não verdadeira. Em contrapartida, já é verdade que esse Sermão parece mesmo ter sido escrito, ou dito, para uma plateia de alpinistas, nomeadamente quando Cristo afirma que, em nome de um bem maior, deveriam os homens arrancar os olhos e cortar as mãos (João Garcia, além do nariz que deixou no Tibete, perdeu nove falanges das mãos e outras tantas dos pés - vejam-no nas imagens, convalescendo em Saragoça, 92 dias de calvário, parece Cristo!). Jesus disse também que os homens deveriam olhar e seguir o exemplo das aves dos céus e dos lírios do campo, já que uns e outros nos dão grandes lições de humildade, ensinam-nos que devemos viver como os simples, sendo destes o reino dos céus. Os céus são também dos que choram, dos bem-aventurados como ele, João Garcia, João José Garcia, nome duplamente bíblico, menino dos Olivais, filho de um piloto da TAP, nado em Lisboa aos 11 de Junho de 67, ido de bicicleta até à Serra da Estrela, aos 16 anos, apenas pela pulsão e pela vontade indómita de escalar, de ser mais do que ele, de olhar mais alto, e que, no sopé dos Himalaias, depois de os ter vencido e domado, verteu muitas lágrimas de dor e raiva pelo companheiro que perdeu nas alturas, hoje na paz dos anjos (e a cuja mulher, de resto, teve de dar a notícia trágica). Bem-aventurados são também, disse-o Cristo, os misericordiosos, aqueles que se apiedam dos seus semelhantes: enquanto lá de baixo lhe gritavam para regressar a toda a brida para o campo-base, João José Garcia respondeu, sereno e tão-só: "não irei descer enquanto não fizer tudo o que puder para ajudar o Pascal." Depois, avisou que iria desligar o rádio se continuassem a insistir para que regressasse. Estava então acima de oito mil metros, na chamada "zona de morte". "Ficámos impressionados com a expressão de solidariedade e amizade de João pelo amigo Pascal", diriam mais tarde Paulo e Helena Coelho, os dois montanhistas brasileiros que com ele falavam pelo rádio - e que, horas volvidas, o acolheram no acampamento, quase cadáver. Se isto não é um herói...

DestaquedestaqueUsando fitas de estores como arnês, uns restos de ferros das obras como pitons e uma corda de sisal comprada numa loja dos escuteiros, João subia a árvores e, sobretudo, às paredes quase verticais de caboucos, nas vivendas que estavam a construir na sua rua, nos Olivais.

Desde então, João está a descer a montanha, em plano inclinado e suave, como de resto nós todos. E é a forma humilde como o faz, e o modo simples como cai e desliza sem pretensões e peneiras, que o tornam num extraordinário. Com a fama conquistada nas alturas, poderia ter feito fortuna, entrado para a política, estrelado na publicidade, posto a render a proeza, tanto mais que nasceu e vive num país de vaidosos e bazófias e tanto mais que, entre os seus compatriotas, foi ele o único a realizar tantas e tão grandiosas façanhas. Mas não. O que dele se soube e sabe é que prosseguiu as escaladas, um pé à frente do outro, um pé à frente do outro, e que, além de ter sido primeiro português a atingir o pico do Evereste, em 18 de Maio de 1999 (entre 20 e 30 de Maio é a "janela" para as ascensões mais exitosas), foi o décimo alpinista do mundo a ascender às 14 montanhas do planeta com mais de oito mil metros e o primeiro português a subir aos sete cumes mais altos dos seis continentes, os chamados "Seven Summits", a saber: Aconcágua, na cordilheira dos Andes, em 1996; o dito do Evereste, em 1999; o Denali, ou McKinley, no Alasca, em 2002; o Maciço Vinson, na Antártida, em 2003, e, no mesmo ano, o Elbrus, na Rússia; o africano Kilimanjaro, em 2005; o oceânico Monte Kosciuszko, em 2010. Acrescente-se que tudo isto foi conseguido sem o auxílio de oxigénio artificial e sem a ajuda de carregadores de altitude e teremos uma noção, somente pálida e aproximativa, da dimensão dos seus feitos. Ou seja, e em suma, João José Garcia subiu a tudo o que havia para subir neste mundo, sem que isso lhe tenha subido à cabeça ou perturbado em demasia o espírito (se exceptuarmos, é óbvio, as s alucinações que sentiu lá no Evereste, fantasmas que quase o mataram; diz-se que Alexandre, o Grande, quando levou os seus exércitos da Índia para o Tibete, referiu-se à região dos Himalaias como "a montanha da grande dor de cabeça" e, na verdade, além das confusões mentais e das fatais perdas de consciência, a escassez do oxigénio flagela os alpinistas com enxaquecas permanentes e terríveis; no cume do Evereste, diz Garcia, só respiramos um terço do oxigénio a que o ser humano está habituado).

A escritora Jan Morris, que, em Maio de 1953, acompanhou como repórter a histórica escalada de Edmund Hillary e de Tenzing Norgay, disse um dia que subiu ao Evereste como anónima, mas que o desceu como a jornalista mais famosa do mundo. É isso que dificulta e torna perigosa a descida, o risco de que a montanha nos aprisione nas suas garras de gelo, nos seus encantos danados, que se entranhe para sempre nos espíritos dos mais fracos ou dos mais vaidosos, enlouquecendo-os, que inebrie os que a domaram, prometendo-lhes o fulgor, a fama - e himalaias de dinheiro. Descer, saber descer, é sempre o mais difícil. Sobretudo porque estar lá em cima, nem que seja por minutos, uma meia-hora apenas, não é experienciar somente a "mais alta solidão", como lhe chamaram Garcia e o seu prefaciador, Miguel Sousa Tavares. Estar lá em cima é, julgamos nós, libertarmo-nos do terrestre e do humano, é furtamo-nos por instantes ao doloroso e ruidoso convívio com os nossos semelhantes, com os que conspurcam as montanhas, pejando-as de lixo e detritos, que as convertem num abjecto negócio de milhões, que negam o auxílio ou o resgate a outros em perigo de vida, só pelo frenesi de subir, de subir, de chegar ao cimo, mesmo que de caminho se espezinhem os outros e a própria consciência. O livro de João Garcia, escrito em parceria com a jornalista Berta Rodrigues, é um catálogo dos horrores do himalaísmo moderno: o Colo Sul do Evereste, a 7900m, a lixeira mais alta do mundo, com toneladas de porcaria; os que cobram fortunas pelo uso de cordas colocadas por terceiros ou apenas pelo envio de um mero e-mail; os que negam o socorro aos outros, mesmo em casos de vida ou morte, ou que chegam a roubar-lhes à força as garrafas de oxigénio ou outros equipamentos vitais. Agora, ao que parece, a nova moda é bater recordes sobre recordes, mas de uma forma estúpida, puramente quantitativa, somente baseada no número de escaladas, com os sherpas Kami Rita e Pasang Dawa a verem qual é o primeiro que sobe 30 vezes lá acima. Haverá, talvez, algo de sexual nisto tudo, como os galãs que contabilizam as mulheres com que dormiram. "Não é um alpinismo que me interessa", diz Garcia, cortante (TSF, de 24/5/2023).

Perante tudo isto, haverá que concluir que João Garcia, apesar do muito que sofreu e daquelas amputações todas, é um homem de muita sorte, que foi bafejado por mil graças e outras tantas bem-aventuranças. Desde logo, porque pertence à última geração que, malgré tout, ainda pôde fazer um montanhismo decente, aquele em que as subidas ao cume do Evereste só valiam se fossem certificadas por uma senhora mítica, Elizabeth Hawley, a americana que se fixou em Katmandu em 1959, e que até à sua morte, em 2018, manteve um registo minucioso das façanhas dos himalaístas. É certo que, no tempo de João Garcia, não tão distante como isso, já havia atropelos vários e grandes imundícies morais, em todo o caso muito menores do que as desvergonhas presentes. A fotografia captada por Nirmal Purja em Maio de 2019, mostrando uma montanha engarrafada, com mais de 200 trepadores no dorso, em fila indiana e à espera de vez, é só mais um retrato, entre outros, do desconcerto que vai pelos tectos do mundo. Neste aspecto, o "turismo de alta montanha" não difere de todos os outros turismos contemporâneos. Porventura, é até pior do que eles, porque é mais caro, e, logo, mais remunerador para os que gostam de status, e porque é mais disputado e lutado e, logo, mais conspurcado do ponto de vista da pegada ecológica e moral que deixa. Contudo, e por muito que custe dizê-lo, João Garcia e os seus camaradas não deixaram, a seu modo, de contribuir para esta miséria, ao desbravarem o caminho e ao virem de lá carregadinhos de histórias "de superação" e de narrativas de "experiências-limite", que todos os outros, como é óbvio, quiseram emular e mimetizar, apenas e tão-só para dizerem que lá estiveram, e que regressaram de lá renovados, purificados na alma, melhores pessoas (nós, que os ouvimos, só podemos concordar, mesmo que rindo baixinho).

Sendo da estirpe de um Reinhold Messner e companhia, seria tentador pensarmos que João Garcia nem parece português. Puro engano. Nos altos dos Himalaias, e nas outras cordilheiras todas, João foi genuinamente luso, outra das suas sortes. Poderemos mesmo arriscar dizendo que, se acaso tivesse nascido no coração da Europa, em terras de maior tradição montanhista, como uma Suíça, uma Itália ou uma França, João Garcia jamais chegaria onde chegou, àquelas alturas máximas, à "Deusa Mãe do Mundo" (Chomolungma), como lhe chamam os tibetanos, ou "Aquela Cuja Cabeça Toca o Céu" (Sagarmatha), no dizer dos nepaleses.

João José da Silva Abranches Garcia, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, como se disse, e o seu pai era piloto da TAP, o que, até aos 19 anos, lhe garantiu viagens aéreas de graça pela Europa inteira. Depois, outra singularidade nacional, muito benfazeja: as férias intermináveis que os nossos estudantes gozavam nas décadas de 70 e 80, quando as aulas terminavam nos inícios de Junho, pelos Santos, e só recomeçavam, na melhor das hipóteses, em meados, finais de Outubro, ou até mais (há notícia de afortunados com aulas começadas em Dezembro, mas deve ser mito urbano).

DestaquedestaqueAo longo da carreira de João Garcia, reunir os fundos para as escaladas afigurou-se uma tarefa mais árdua do que conquistar montanhas. Daí a necessidade que teve de publicitar os seus feitos, de dar entrevistas e falar de si, um "mal necessário".

"Tínhamos todos um Verão bastante prolongado", recorda João, lembrando o seu grupo de juventude, meninos de Lisboa e da Linha, o Pardal, o Zé Luís, o António, o Emílio, o Gonçalo Velez (ao escalar o Annapurna, em 1991, Velez foi o primeiro português a escalar uma das 14 montanhas acima dos oito mil metros). O ócio de muitos meses permitia-lhes darem escape às suas ganas, vazarem a adrenalina, queimarem a testosterona, sonharem com mil aventuras, concretizarem algumas, como esta do montanhismo; e possibilitava, por outro lado, que muitos fossem trabalhar para fora, vindimando na Suíça a troco de bons salários, que lhes davam o dinheiro que em Portugal escasseava, e com o qual compravam tendas e equipamentos nas poucas lojas que então havia, como a Socidel e a Casa Senna, ambas na Rua Nova do Almada, à saudosa Baixa, que hoje mataram. "Eu ia ficando na Suíça até a minha mãe telefonar, de Lisboa, a dizer que as aulas tinham começado", conta João. Pudera.

Aos 16 anos, foi de bicicleta até à Serra da Estrela só para ver de perto o que, sob a batuta de um instrutor espanhol, Angel Miguel Muñoz, por lá faziam os pioneiros membros do Clube de Montanhismo da Guarda, à época em franca expansão. Levava um boião de compota no guiador da bicla, ia comprando pão pelo caminho, comia em andamento, sem perder tempo. Já então, a vontade férrea e a paixão das alturas, aquela espécie de vertigens ao contrário, de baixo para cima, que leva alguns, doidos de todo, a quererem trepar a tudo quanto lhes apareça à frente. Usando fitas de estores como arnês, uns restos de ferros das obras como pitons e uma corda de sisal comprada numa loja dos escuteiros, João subia a árvores e, sobretudo, às paredes quase verticais de caboucos, nas vivendas que estavam a construir na sua rua, nos Olivais (ainda está por estudar, e é pena, o impacto social e cultural do bairro dos Olivais como viveiro de juventudes, umas mais transviadas, outras mais atiladas). Os pais, claro, nem imaginavam as loucuras que o filho fazia, e nas quais, uma vez mais, teve a sorte dos audazes ou a intervenção do divino.

O próprio reconhece o privilégio de ter nascido no Portugal da altura: desde logo, e a um nível mais imediato, porque a paragem das obras e da construção no pós-25 de Abril lhe proporcionou um enorme playground de cimento armado onde ele e os amigos, feitos macacos, davam largas às suas taras escaladoras; por outro lado, e mais decisivamente, porque, diremos nós, a pobreza e o provincianismo do país, a sua lonjura face à Europa, aguçavam nos jovens dois sentimentos distintos, mas convergentes, o do desenrasca e do improviso, por um lado, e o de um enorme desejo de evasão e fuga, por outro. Do lado de cá de uma imperceptível cortina de ferro, a do atraso e da ultraperiferia, e de uma forma absolutamente inimaginável para os jovens de agora, Londres, Paris ou até mesmo Madrid eram literalmente um outro mundo ou, se quisermos, um mundo-outro. O "estrangeiro" era uma entidade mítica e ir lá, "ir ao estrangeiro", sobretudo em modo autónomo, livre da tutela dos pais, constituía um emblema poderoso, de status e não só, a prova provada de que se era destemido e arrojado, um "maluco" (ou mesmo "ganda maluco"). Na eterna atracção que os jovens têm pela marginalidade, e que os faz ora terem por modelos gente do piorio, ora resvalarem em vícios de alto risco, ir à boleia até Londres ou apanhar o Sud para França correspondiam ao ersatz lusitano do Easy Rider, dos hippies e do Woodstock. Do ponto de vista do que mais interessava - a aura de macho para os pares e a atenção dos sectores femininos -, "ir ao estrangeiro" importava sobretudo pelo regresso, não pela partida, pela possibilidade de, à chegada, em rodas de amigos embasbacados, contar histórias atrás de histórias aventurosas, todas de fábula (sobretudo as que respeitavam a sexo frenético com suecas em carruagens de comboios). Traziam-se produtos inacessíveis, quais as especiarias d"outrora, como calças Levi"s ou blusões de marca, enquanto se falava de Coca-Colas e MacDonald"s. João Garcia pertenceu a esta geração e, se viajou para o Tibete e derrotou o Evereste, foi também, não o duvidem, porque, tal qual os descobridores de Quinhentos, nasceu num país periférico e pequeno, longe da civilização e do mundo.

DestaquedestaqueNa descida do Evereste, sempre nela, derrapou numa laje quando não estava encordado, e ficou agarrado a uma corda velha, apenas com uma mão, as pernas lançadas ao abismo. "Tive muita, muita sorte", confessou.

Começou a escalar com o Clube da Guarda, nas serras da Estrela, de Gredos, de Bejar, e, aos 17 anos, subiu pela primeira vez ao Monte Branco (uma vez mais, e à maneira portuguesa, colando-se indecentemente a uma expedição já organizada). Aos 19, e graças aos bilhetes do pai-piloto, começou a ir aos Alpes, andou com os amigos por Chamonix, deslumbrado pelo que via na "Meca do alpinismo", a Maison de la Montagne, a École National de Ski et Alpinisme (ENSA), etc. Enquanto os mais abonados ficavam em parques de campismo de luxo, ou nas instalações da ENSA, ele pernoitava nos campings mais baratuchos, que nem água quente tinham. Depois fez a tropa, esteve colocado três anos em Bruxelas, na NATO, entre 1990 e 1993, no epicentro da Europa e do montanhismo, o que lhe permitiu fazer novas escaladas e, sobretudo, ganhar e poupar dinheiro para outra expedição maior, o Cho Oyu, nos Himalaias, o seu primeiro "oito mil". "Foi uma belíssima expedição, tudo correu bem, regressámos todos sãos e salvos", diz Garcia, pouco depois de contar que teve de arrancar um dente a sangue-frio, com um alicate de montanhismo, e que, a dado passo, no caminho para o cume, escorregou na neve e ficou pendurado num precipício, seguro apenas por uma corda de seis milímetros de espessura. Se é esta a sua definição de "tudo correu bem", diremos tão-só: há malucos para tudo.

No regresso a Portugal, ganhou a vida como guia de passeios a pé, fez mil ganchos e biscates, andou a lavar vidros dos prédios, a colocar objectos no cimo de montes ou de edifícios, e até ajudou a içar uma cruz gigantesca para os lados de Sintra, estamos em crer que daquelas luminosas, colossais, que em tempos desfearam a paisagem portuguesa. Tudo por causa do vício das alturas, daquela droga dos cumes. Enganam-se aqueles que julgam que as suas expedições eram chegar ao sopé de um monte e veni, vidi, vinci: muitos picos só foram alcançados ao fim de uma, duas ou mais tentativas (no Nanga Parbat, em 1996). Noutras ocasiões, João ficou em terra por um singelo motivo, falta de verba. Em 1995, desafiaram-no para subir ao Evereste, ele escreveu cartas para mais de 40 empresas, suplicando patrocínios, chegando a ter a promessa de mil contos, mas depois tudo falhou, Garcia ficou apeado.

Quando lemos os relatos de travessias ilegais que fez (no Mera Peak, por exemplo), sem pagar as milionárias licenças cobradas pelas autoridades nepalesas (uma simples licença de subida custa actualmente cerca de 11 mil dólares e há viagens a custarem 220 mil dólares...), ou quando nos conta o modo como ia ouvindo pela rádio as informações meteorológicas dos outros, pagas por estes a peso de ouro, concluiremos que, lá nas alturas do Tibete, João Garcia continuou a ser, então e sempre, um daqueles miúdos dos Olivais que nos anos 70/80 vendiam peças de motas na Feira da Ladra ou gamavam os emblemas e a gasolina dos carros. Toda a sua carreira pode resumir-se, aliás, nesta única e singela frase: um pelintra no Tibete. Não por acaso, tem especial orgulho ao falar os materiais que produziu com o seu engenho e arte, muito mais do que nas suas proezas alpinas, e quase parece que quer ser recordado pelas tendas que concebeu, com 21 pontos de fixação e tecto duplo, imunes ao vento, pelo fecho éclair duplo, mais resistente, pelas suas primeiras polainas, pelos sacos-cama e sacos de bivaque, pelo estratagema que inventou para acondicionar a fruta em prateleiras nos bidões verticais, retardando a podridão (nas expedições, estragam-se cerca de 20% dos alimentos), pelas cordas e pitons que improvisou, e, enfim, pelas muitas chico-espertices lusitanas com que se safou lá em cima - e que lhe permitiram descer incólume, ou pelo menos vivo.

O improviso português avultou também em horas menos felizes e só por um triz não foi responsável por maiores desastres: ao atingir o cume do Evereste, e sem a certeza de o ter alcançado, Garcia andou às voltas à procura de um célebre tripé de alumínio que lá existia, a prova de que chegara ao pico, ignorando um dado básico, de todos sabido, que esse tripé fora há muito removido; com isso, perdeu tempo precioso para a descida, mas o pior ainda foi ter de voltar ao cume com Pascal, pelo simples motivo de se ter esquecido de tirar fotografias no momento heróico. Esses e outros erros (como o facto de o belga ter colocado a sua lanterna de testa, o frontal, na mochila de Garcia) quase lhe custaram a vida e contribuíram, sem dúvida, para muito do sucedido.

Um pelintra no Tibete. Ao longo da carreira de João Garcia, reunir os fundos para as escaladas afigurou-se uma tarefa mais árdua do que conquistar montanhas. Daí a necessidade que teve de publicitar os seus feitos, de dar entrevistas e falar de si, um "mal necessário" que fez com aparente incómodo e apenas com aquele objectivo. Após o triunfo no Evereste, obteve o apoio do Millenium BCP, sem o qual jamais conseguiria ter feito o que depois fez, os 14 K, mas a crise financeira acabou por destruir-lhe os planos, obrigando-o a aprender "não a ganhar muito, mas a saber gastar menos" (Observador, de 16/5/2019). Com Pascal Debrouwer, formou em 1997 a empresa Montagnes du Monde e partilhou dezenas de peripécias e aventuras, razão maior para dor sentida pela sua morte.

E aos canalhas que então lançaram a suspeita de que Garcia terá abandonado o amigo, e além do testemunho dos presentes (os brasileiros Paula e Helena, o francês Alain Hubert), junta-se um outro facto esclarecedor, mais que probante: no ano a seguir à tragédia, Garcia foi até ao Tibete com Nathalie, a viúva do amigo, num derradeiro acto de despedida e homenagem ao valente belga.

Hoje, já retirado das lides, ou quase, João ganha a vida como guia, a dar palestras motivacionais, seguindo as pisadas de Cristo e de Buda ("Só atinge o topo quem se esforça", "O segredo não está em nunca cair, mas em saber levantar-se"; "As pessoas são o activo mais valioso das empresas", entre outras inanidades), e tem publicado alguns livros (Mais Além: Depois do Evereste, 2007; 14: Uma Vida nos Tectos do Mundo, 2014), num dos quais partilha a capa e a autoria com outro trepador de excepção, o comendador Rui Nabeiro (10 Passos para Chegar ao Topo: Todo o Empreendedor Tem o seu Evereste, 2009). Entre 2006 e 2009, foi embaixador da prevenção contra a SIDA e, nesse último ano, lançou o filme "Joao Garcia sur la route des 14", com realização de Johan Perrier. Também ele realizou diversos documentários, sendo o único cameraman português de altitude. "Nos últimos tempos tem estado afastado das luzes mediáticas", disse-o a TV Record num programa de 2022, onde João reconheceu, sem peneiras nem jactâncias, que tem tanto medo como nós e que nada teria feito sem o auxílio dos sherpas. Na sua opus magnum, descreve a chegada ao pico do Evereste com desarmante lhaneza, até candura, e, apesar de relatar algumas experiências de quase-morte, quando viu o seu corpo a flutuar, protegido por uma tenda transparente, rejeita os arroubos místicos muito típicos dos registos alpinistas: "Ali estava eu, tão perto do Céu como se pode estar com os pés na Terra, e só pensava em respirar. Não tive nenhum pensamento profundo, tipo "Foi para isto que vivi toda a vida." Nada". Depois, desceu por ali abaixo, quase morrendo, e voltou a esta Terra, tal qual os astronautas que reentram na atmosfera e são obrigados a regressar ao humano, demasiado humano, e às misérias do mundo.

Ao longo de uma carreira brilhante, terminada em 201 no Annapurna (onde a relação entre os alpinistas no cume e os mortos nas vertentes supera os 3 para 1, sendo de 4 para 1 no K2), João Garcia passou a vida nas nuvens, ou lá perto, falou com muitas montanhas. Acima de tudo, soube escutá-las, ouviu o que elas diziam, por vezes aos gritos de vento, noutras tão-só em sussurros. Daqui a muitos anos, quando fecharem, os seus olhos terão visto coisas sublimes, prodígios inacessíveis a nós, que somos comuns mortais, como as do glaciar Barun, de Baruntse, um glaciar velho, de gelo vivo, perigosíssimo, as da cascata de gelo do glaciar de Khumbu, a zona mais mortífera do Evereste, ou a Estrada dos Penitentes, com dentes de gelo de mais de 40 metros de altura.

Na descida do Evereste, sempre nela, derrapou numa laje quando não estava encordado, e ficou agarrado a uma corda velha, apenas com uma mão, as pernas lançadas ao abismo. "Tive muita, muita sorte", confessou, aliviado e grato. Lá em cima, gostava de ouvir com Pascal uma velha cassete com êxitos dos anos 60, Beatles e Beach Boys. Hoje, diz que só talvez uns 10 por cento dos portugueses o reconheçam na rua, facto que não o incomoda, pelo contrário. Confessa nunca ter visto o Iéti, a mítica criatura himalaia, sem perceber que o monstro não é um bicho, antes a própria montanha, as suas garras de gelo, e que talvez também ele seja um Iéti, o Iéti-Garcia, admirável homem das neves.

A história é conhecida: um dia, perguntaram ao célebre alpinista George Mallory porque queria tanto escalar o Monte Evereste. "Porque está lá", foi a resposta, curta e seca, eloquente. Mais do que subir ao Evereste, João soube descê-lo e, por isso, hoje faz parte dele. Assim, aos que nos perguntarem porque será ele um herói, responda-se curto e seco: "Porque está cá".

*Prova de vida (24) faz parte de uma série de perfis

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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